God of War: Ragnarok foi o primeiro jogo que efetivamente comprei para o recém-adquirido PS5 do Antropogamer (Marvel’s Spider-Man 2 veio junto com o console, por isso acabou sendo resenhado primeiro). Tenho uma relação muito especial com a série: God of War III foi, de modo semelhante, o primeiro disco que comprei para o PS3, enquanto God of War (2018) se tornou um dos meus jogos favoritos do PS4 – do tipo que eu colocava para rodar quando recebia amigos em casa, logo antes de começar um discurso apaixonado sobre a capacidade artística dos videogames. Surpreendendo zero pessoa, portanto, Ragnarok era o jogo mais aguardado por mim nos últimos anos, e não seria exagero dizer que foi um dos motivos para bater o martelo e finalmente comprar o console com cara de roteador da Sony.
Eis que, um ano e meio após o lançamento de GoW: Ragnarok – meio atrasado, é verdade –, cá estou para oferecer meus dois centavos sobre a mais recente produção cometida pelo estúdio Santa Monica. Infelizmente para mim (e para todos que esperavam mais do que um balde de água gelada no cocuruto), a última iteração da série God of War é uma bola de neve de escolhas equivocadas.
FRIO COMO UM CADÁVER
Se puxar pela memória, você deve se lembrar de que, inicialmente, a saga nórdica de Kratos deveria ser uma trilogia. Mas parece que alguém com um mínimo de bom senso (ou completa falta dele, dependendo do ponto de vista) resolveu puxar o freio de mão. Pouco antes do lançamento de God of War: Ragnarok, recebemos a notícia de que a história atual se encerraria com esse novo jogo, fazendo da saga uma duologia (palavrinha besta para “sequência”, vamos concordar). Fui uma das pessoas que torceu o nariz para essa decisão. Munido de meus botões, logo pensei que encurtar a saga seria uma baita flechada no pé. E eu estava certo – mas pelos motivos errados.
Não sem razão, temi que Ragnarok fosse sabotado por uma narrativa atropelada. Acompanhe meu raciocínio: enquanto God of War de 2018 (doravante simplesmente GoW, já que estamos na intimidade) leva seu tempo para contar uma história sólida e cheia de nuances, estabelecendo sem pressa as configurações daquele universo e desenvolvendo com calma a relação entre os protagonistas, Ragnarok teria a ingrata missão de responder, de uma só tacada, todas as muitas perguntas plantadas ao longo do primeiro game. Seriam dois jogos condensados em um, com diversas pontas soltas para amarrar até os créditos rolarem.
Parecia certo prever que Ragnarok contaria uma história acelerada, do tipo sebo nas canelas – o que poderia facilmente resultar em uma narrativa afobada, como aqueles episódios de final de série que precisam resolver anos de desenvolvimento em 50 minutos. Por outro lado, imaginei que, na pior das hipóteses, o ritmo do jogo estaria salvo: afinal, com tanta história para ser contada, God of War: Ragnarok haveria ao menos de ser eletrizante, com muita coisa acontecendo o tempo todo.
Mas aí veio a realidade, meu antropofágico leitor, e a realidade me acertou com força. Qual não foi minha surpresa ao descobrir que o maior problema de Ragnarok não é ter muito para dizer em pouco tempo, mas bem o contrário: levar tempo demais para dizer muito pouco. Isso porque a Santa Monica, no fim das contas, não tinha uma história para contar. E pior: não soube contar o pouco de história que tinha.
Ragnarok começa com uma baita introdução. As duas primeiras horas são as melhores de todo o jogo, causando uma putaqueparível de uma bela impressão. Há uma tensão crescente no ar: o mundo foi tomado pelo Fimbulwinter, inverno que precede o apocalipse nórdico. Freya está caçando Kratos e Atreus após os eventos do primeiro jogo. E o que já era de se esperar: Odin bate à porta de nossos heróis, finalmente dando um rosto ao sujeito de quem tanto ouvimos falar em GoW. É um começo poderoso para o derradeiro capítulo da jornada nórdica. E como que para coroar esse grande início, logo saímos da frigideira para o fogo ao ser lançados em uma batalha contra Thor, o pinguço Deus do Trovão, da qual escapamos vivos por muito pouco.
Apesar de não ter o mesmo impacto da introdução do game anterior, Ragnarok consegue emulá-la com competência, deixando o jogador na ponta da cadeira e ansiando por mais. É um ótimo começo, sim senhor. Tão bom que, após a peleja com Thor, pude jurar que o jogo estava me dizendo: Agora sim você vai ver, filhão. Agora sim God of War: Ragnarok vai mostrar a que veio. Tá preparado? Vai começar, eim? Se segure que o pau vai torar, maluco. Lá vai. Preparado? Vai começar, eim? A qualquer momento agora. Se segure…
Mas o problema é que o jogo nunca engata de verdade, e fica para sempre na promessa, gerando uma antecipação que jamais se concretiza. Pelas dezenas de horas seguintes, teremos um pouco de tudo: combate, puzzles, dramalhão, puzzles, diálogos expositivos, puzzles, um canavial de novos personagens e muitos, muitos baús para serem abertos (por meio de puzzles). Mas sabe o que jamais encontramos? Um enredo coerente.
GOD OF WAR: RAGNAROK E SUA HIPOTERMIA NARRATIVA
Os problemas com a narrativa de God of War: Ragnarok são tantos que não seria difícil escrever um texto de dez mil palavras para escavar todos os furos, buracos, crateras e inconsistências gerais do roteiro. Mas também não estou aqui para chutar cachorro morto, nem você para fazer um doutorado em jogo ruim, por isso vou me ater aos pontos que considero mais significativos – e fica a seu critério explorar por conta própria outras reentrâncias desse queijo suíço em forma de enredo.
O primeiro erro da Santa Monica (que de santa não tem nada) é também o mais decepcionante: Ragnarok não colhe os frutos das sementes plantadas no jogo anterior, e ainda faz questão de sepultá-los sob dois metros de permafrost. Muito do setting instalado ao fim do primeiro jogo, quando descobrimos um mural com previsões para o futuro, é simplesmente descartado, distorcido ou relegado a segundo plano. Quem esperava ver os desdobramentos da verdadeira identidade de Atreus – que em GoW descobrimos ser Loki, o deus nórdico da trapaça – vai continuar solenemente esperando. E o que dizer da relação entre Atreus e Jörmungandr, a Serpente do Mundo, um dos maiores mistérios semeados em 2018?
A origem do réptil (cuja participação no jogo, aliás, não passa de cinco minutos de tela) é tão banal e rocambolesca que quase não dá para acreditar que foi parar no produto final. O próprio evento apocalíptico do Ragnarok, que deveria ser a peça central do jogo, representa nada mais que, pasme, 5% da missão principal (eu conferi pelo sistema de progresso do console), e consiste basicamente em um esquema de corredores com combates genéricos. Na prática, isso significa que, das 70 horas que levei para terminar essa bomba, apenas 60 minutos foram dedicados ao evento apocalíptico que dá nome ao jogo – e nem foram 60 minutos particularmente inspirados.
Outro grave problema da narrativa é o personagem de Odin. Tanto o primeiro quanto o segundo jogo são incisivos ao retratá-lo como um bad ass motherfucker que você deve odiar como se ele tivesse matado a própria mãe. Os personagens secundários estão sempre falando sobre o Pai de Todos, contando histórias que o pintam como o sujeito mais sacana, cruel e ardiloso dos nove reinos. Mas, quando o conhecemos, logo no início do game, ele mais parece um figurante de Sons of Anarchy ou aquele tiozão riponga do boteco da esquina do que um violento deus nórdico em busca de poder.
Veja bem: essa quebra de expectativa não é, por si só, um recurso desinteressante. É possível, sim, humanizar e humorizar um personagem perverso para ressaltar sua perversidade – a exemplo de Hans Landa, o sádico vilão de Bastardos Inglórios. Mas o Odin de Ragnarok nunca faz por merecer sua fama. Ele é mal porque as pessoas nos dizem que ele é mal, e o roteiro espera que seja o suficiente para acreditarmos nisso. Contudo, à exceção de poucas cenas lá para o fim do jogo (e ainda assim bastante questionáveis), jamais vemos o personagem cometer uma genuína maldade. Tudo o que Odin deseja é sobreviver e evitar o fim do mundo, assim como Kratos e Atreus.
O início do jogo inclusive mostra o “vilão” oferecendo trégua a Kratos, prometendo deixá-lo em paz se este fizer o mesmo. Kratos não aceita, e nunca fica claro o motivo de sua recusa (porque, dã, do contrário não haveria conflito, resmunga o roteirista de Ragnarok). Pelo resto do jogo esperei que Odin revelasse seu verdadeiro plano, aquele que justificaria o bom senso de Kratos ao declinar do armistício, mas não: Odin só queria mesmo sobreviver e cancelar o fim do mundo, em uma tentativa de evitar mortes desnecessárias. Que babaca, não?
ENXUGANDO GELO
Mas talvez o maior problema com o roteiro de God of War: Ragnarok, do ponto de vista técnico, seja sua incapacidade de se comprometer com um foco narrativo. GoW, cinco anos antes, tinha inspirações claramente cinematográficas, buscando contar uma história bem estruturada, com arcos de personagens definidos e uma linha narrativa perfeitamente desenhada. Ragnarok, por outro lado, está mais para uma série, daquelas que têm um ótimo arranque para despertar a curiosidade do espectador, mas vão paulatinamente minando sua própria inventividade com episódios que se arrastam sem levar a história para lugar algum – a série The Servant é um infeliz exemplo recente que me vêm à cabeça.
A impressão que tive é que Cory Barlog, diretor do jogo anterior, tinha ótimas ideias para a saga nórdica de Kratos, e fez tanto quanto possível para pavimentar o caminho dos próximos jogos. Mas então ele abandonou o barco, e os roteiristas que ficaram não souberam (ou não conseguiram, ou não quiseram) seguir seus passos, preferindo naufragar em uma maré de escolhas ruins.
Acredite se quiser, mas pouco de relevante acontece entre as duas horas iniciais de Ragnarok, quando o mapa começa de fato a se abrir para o jogador, até o fim da campanha. O que temos são missões e objetivos descolados do todo, como pedaços de um iceberg derretendo sob o sol quente, episodicamente ilhados e isolados da história principal: encontre Tyr (ainda que ele não sirva para nada), encontre as Nornas (ainda que elas não sirvam para nada), encontre a Máscara da Criação (ainda que, essa sim, não sirva para nada mesmo).
Estamos sempre correndo de um lado a outro que nem barata tonta, navegando por imensos cenários atrás de objetos ou personagens que, analisando friamente, não servem a qualquer propósito narrativo além de nos fazer ir e voltar pelos cenários como uma bola de pingue-pongue barbuda e truculenta. É como se os roteiristas precisassem ganhar tempo antes de chegar ao fim do jogo, pois não têm uma história coesa para contar, e por dezenas de horas seguem criando plots minguados e subtramas chochas para encher a grande linguiça que se tornou o roteiro.
Nesse sentido, Ragnarok parece um rascunho: uma coleção de ideias anotadas em um guardanapo e coladas sem jeito umas às outras por intermédio de uma história mambembe. Sei disso porque a estrutura narrativa se parece exatamente com o rascunho que faço para os meus escritos, incluindo os artigos do Antropogamer. Primeiro, topicalizo informações importantes e anoto algumas ideias brutas, para depois desenvolver o texto ao redor delas. Mas Ragnarok nunca tenta trabalhar suas motivações para além do esboço inicial, negando uniformidade e consistência à história que quer contar.
As cenas estão todas lá, como se rabiscadas em uma planilha de check-list: personagem carismático batendo as botas (✓), inimigo se transformando em aliado (✓), batalha épica contra monstro gigante (✓), vinte e duas ocasiões em que Kratos coloca a mão no ombro de Atreus e rosna um incentivo moral (✓).
As cenas estão lá, sim, mas elas não funcionam como deveriam. Não são orgânicas e fracassam em suscitar o devido investimento emocional do jogador. Cito como exemplo a clássica “cena de sacrifício”, um tropo já quase obrigatório na ficção fantástica, na qual um personagem se entrega à morte em benefício de seus companheiros. God of War: Ragnarok tem não apenas uma, mas duas cenas de sacrifício, e ambas estão entre os piores momentos de escrita do jogo.
Na primeira, quem se sacrifica é um sujeito que apareceu dois minutos antes e mal teve uma fala que nos ajudasse a criar um laço afetivo com ele – sendo, por isso, muito difícil sentir o peso de sua morte. O jogo tenta compensar essa gafe de roteiro com uma trilha sonora verdadeiramente emocionante, do tipo que tocaria durante a queda de Gandalf ao enfrentar o Balrog em O Senhor dos Anéis, além de um impecável trabalho de câmera.
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Mas, quando o sujeito se sacrifica, apesar da música épica e da potência de seu altruísmo, fui incapaz de sentir algo por ele – afinal, era um completo desconhecido. Não ajuda que, imediatamente após a suposta morte do personagem, alguém ateste (e com razão) que ele “deve ter sobrevivido”. Vish. Sente o cheiro de escrita podre? Matar um personagem e, no momento seguinte, tirar todo o peso de seu sacrifício dizendo ao espectador/jogador que, veja só, ele não morreu coisa nenhuma – eis a amarga receita para transformar uma cena incrível em uma passagem medíocre.
Já pensou se tivessem feito o mesmo na supracitada cena de O Senhor dos Anéis? Gandalf se estabaca abismo abaixo, arrastado pelo monstrengo que se sacrificou para deter, e um instante depois Frodo comenta: Não se preocupem, ele vai voltar no segundo filme!
Já a segunda cena de sacrifício em Ragnarok (porque, dã, uma não é o bastante), pertinho assim do final do jogo, é tão despropositada e irrelevante quanto a própria existência do personagem que a protagoniza. É uma morte sem sentido, justificada apenas pela necessidade de, não sei, aumentar o contador de mortes do jogo. Trata-se de um personagem raso e pouco desenvolvido, cujo sacrifício final é raso e pouco desenvolvido – talvez tenha feito sentido na sala dos roteiristas, mas é inacreditável que saiu de lá para encontrar a luz do dia. Vi gente tentando oferecer uma explicação para essa morte, associando-a ao evento do Ragnarok como descrito pela mitologia nórdica. Mas a verdade é que, se uma cena precisa ser explicada com informações externas à obra para fazer sentido, ela simplesmente não é uma boa cena.
UMA AVALANCHE DE PERSONAGENS RUINS
Também a quantidade massiva de novos personagens atrapalha a experiência geral do jogo. Em vez de trabalhar os ótimos personagens que já conhecemos do primeiro game, e continuar a desenvolvê-los, Ragnarok prefere introduzir mais de uma dezena de novos caboclos de relevância questionável e com arcos narrativos tão curtos que mais se assemelham a uma reta. São personagens mal aproveitados (Angrboða), inconsistentes (Thrúd), rasos como mar de cuspe (Freyr) ou, com muita boa vontade, apenas engraçadinhos, como um esquilo falante cuja função é, dã, render boas screenshots que fazem o jogo parecer um filme dos Guardiões da Galáxia.
Foi necessário um jogo inteiro para criar uma conexão com Atreus em 2018, mas de repente acreditaram que seria uma boa ideia anexar vários personagens novos em um único jogo sem a menor preocupação em desenvolvê-los. É mais ou menos como acontece em certas produções de super-heróis, a exemplo de praticamente todos os filmes dos X-Men: a cada iteração, os roteiristas pegam um punhado de personagens inéditos e simplesmente os lançam dentro do roteiro, articulando pequenas participações totalmente dispensáveis à história geral apenas pelo fan service, sem a preocupação de trabalhar as motivações ou o destino desses personagens.
Entre outros dos muitos exemplos possíveis, cito a presença de Hildisvíni em Ragnarok. Lembra-se dele? Pois é, eu também não lembrava. Sua inclusão na história não faz a menor diferença no jogo, mas ainda assim os roteiristas preferiram gastar tempo com ele do que aprofundando a relação entre personagens que realmente importam. Essa inabilidade de desenvolver relações e personagens fica ainda mais evidente pela grande variedade de companions que temos ao nosso lado durante a campanha. Por mais bem-vinda que seja essa rotatividade de sidekicks, isso significa que nunca chegamos realmente a aprofundar nosso relacionamento com nenhum deles. Há muita conversa e trocação de palavras, sim, mas elas são inócuas e estão lá apenas para camuflar a falta de objetividade da história.
Como você já deve ter percebido, minha maior bronca com Ragnarok é seu enredo, que sai do nada para chegar a lugar nenhum. O final é tão decepcionante que fiquei honestamente envergonhado comigo mesmo por ter investido tanto tempo da minha vida (incluindo os cinco anos de espera por essa sequência) acreditando que a conclusão da saga nórdica de Kratos seria qualquer coisa além de uma fria decepção. A história é escorregadia e frágil como um cubo de gelo, feita para um público médio que não se importa em engolir um pratão de clichês no café da manhã.
Por sorte, consegui aproveitar melhor o jogo depois que, lá pelas 40 horas de gameplay, enfim parei de esperar algo da história e aceitei que Ragnarok é basicamente uma coleção de arenas intercaladas por puzzles e atividades de coleta. Não serei injusto: em muitos aspectos, as mecânicas de God of War: Ragnarok são bastante divertidas. Em contrapartida, apesar de seus acertos, mesmo a jogabilidade consegue – inacreditavelmente, eu sei – derrapar na pista e sair capotando como um trenó em alta velocidade.
ANDANDO EM GELO FINO
Se há algo de bom a ser dito sobre o revival da série God of War é a qualidade de seu combate. As lutas – tanto em GoW quanto em Ragnarok – são viscerais, crocantes e suculentas, permitindo-nos transformar em carne moída quase tudo o que atravessa nosso caminho. E se teve algo que a Santa Monica soube evoluir foi precisamente esse aspecto do game. Se em 2018 o combate pecava pela parca variação nas animações de combate e baixa diversidade de inimigos, aqui o jogo muda completamente.
Há dezenas de adversários muito diferentes entre si, bem como distintas animações de batalha e execução para cada um deles. Mais que isso, a Santa Monica ouviu o que talvez fosse a maior reclamação entre os fãs: a falta de oponentes gigantescos, como aqueles que enfrentávamos nos tempos idos da Grécia Antiga, quando Kratos não pensava duas vezes antes de distribuir uns sopapos em criaturas dez vezes maiores que ele.
Os melhores momentos de Ragnarok são, justamente, as batalhas contra esses chefes enormes, que são constantes e variadas – deve haver pelo menos uma dúzia delas ao longo da campanha, entre missões principais e secundárias. É uma pena, no entanto, que nenhuma delas cause o mesmo impacto dos primeiros jogos, muito por causa da perspectiva de câmera sobre o ombro do personagem, diferente daquela que tínhamos nas gerações anteriores.
O fato é que lutar contra seres gigantescos não é tão emocionante quando o bicho quase não consegue ser enquadrado pela tela da TV. Durante a maior parte da batalha, você estará se digladiando com uma perna, um joelho ou uma pata, sem conseguir ter uma visão panorâmica da cena, como acontecia nos jogos antigos. Há exceções, como a espetacular batalha contra Nidhogg – muito por conta da posição do inimigo, que fica praticamente estático no cenário. Mas, no geral, é possível entender a escolha dos desenvolvedores de reduzir a quantidade de inimigos grandalhões em 2018: a escala simplesmente não funciona muito bem com esse jogo de câmera atual. Reconheço o esforço, porém, e bato palmas para a extraordinária variação de inimigos em Ragnarok, sejam grandes ou pequenos.
Aliás, já que estou me sentindo subitamente generoso, vale também tecer elogios à cinematografia dos movimentos de câmera durante as cutscenes. As soluções usadas para lidar com a ausência de cortes – como encontrar ângulos específicos para mostrar dois personagens conversando em posições diferentes em um mesmo cômodo, ou mesmo para acomodar vários personagens em uma mesa durante o jantar – são, na falta de uma palavra melhor, geniais. Isso não significa, entretanto, que eu concorde com o uso do plano-sequência em Ragnarok. Foi um recurso usado magistralmente em 2018, mas a história contada lá era muito mais pessoal, com menos personagens e firulas narrativas.
Em Ragnarok, a história está continuamente se dividindo entre o caminho de Atreus e de Kratos, englobando ainda um sem-fim de outros personagens e narrativas menores. A escala do enredo aqui não combina com um plano-sequência, e acredito que muitos dos problemas do jogo podem ser uma consequência dessa impossibilidade autoinfligida pelos desenvolvedores de contar uma história sem cortes – sejam espaciais ou temporais.
Apesar do combate glorioso e do mirabolante trabalho de câmera, porém, a jogabilidade de Ragnarok é frequentemente puxada para baixo pela excessiva quantidade de puzzles e pelos labirínticos mapas do jogo. Não sei qual é o tesão da Santa Monica em inserir 12.387 puzzles em um jogo cuja graça é obviamente o combate, mas ainda assim os quebra-cabeças estão lá a todo momento: seja para abrir uma porta, atravessar uma área, alcançar um baú ou simplesmente prosseguir com a narrativa. A cada dez minutos de jogo eu me via parando o que estava fazendo para girar a câmera pelo cenário, tentando descobrir a solução de outro puzzle.
Segundo fontes da minha cabeça, 50% da jogabilidade de Ragnarok gira em torno de resolver quebra-cabeças, enquanto os outros 50% são reservados ao combate. Me desculpe, mas se você é fã de puzzles, deveria estar jogando The Talos Principle, e não God of War. Quem é que pensa em quebra-cabeças quando pensa no Deus da Guerra? O pior de tudo é que os puzzles, além de quebrar o ritmo já desequilibrado do jogo, não combinam em nada com a urgência da história que está sendo contada, muito menos com a personalidade do protagonista.
Kratos é um sujeito sem a menor paciência, do tipo que já matou uma mulher apenas porque era a forma mais prática de manter um portão aberto. Vê-lo ziguezaguear pelo cenário como aquele meme do John Travolta, tentando encontrar o ângulo exato onde acertar seu machado para fazê-lo ricochetear na parede certa, vai absolutamente contra a caracterização do personagem.
Muito se fala da dissonância ludonarrativa presente na série Uncharted, em que a absurda contagem de corpos deixada por Nathan Drake rivaliza com seu caráter de bom-moço apregoado pelo enredo. Pois para mim, GoW e Ragnarok elevam à décima potência esse desencontro entre o que fazemos enquanto jogadores e as características do personagem que controlamos. Resolver uma penca de puzzles não combina em nada com a personalidade de um sujeito que assassina inocentes apenas para não ter que desviar de seu caminho.
Entendo que a função dos quebra-cabeças seja criar um respiro entre as sequências de combate e exploração, mas seria muito melhor que funcionassem em conjunto com a narrativa, e não contra ela. Em The Last of Us, por exemplo, os puzzles estão intimamente atrelados à história que está sendo contada, e parecem orgânicos dentro da proposta do jogo – são desafios como posicionar corretamente uma escada ou ajudar outro personagem a atravessar uma área alagada. São obstáculos plausíveis, que não parecem estranhos à narrativa. O mesmo não acontece em God of War. Trata-se de um mundo cheio de alavancas, pontes e pedras onde ricochetear seu machado, apenas para justificar a abusiva quantidade de puzzles e a enfadonha mecânica que os governa.
E tudo fica ainda pior quando comparamos o GoW de 2018 com este Ragnarok. No jogo anterior, a exploração poderia ser justificada (ou ao menos apaziguada) pela falta de urgência da narrativa. Afinal, o objetivo era levar as cinzas de Faye até o topo da montanha mais alta, e não havia muita pressa nisso. Já Ragnarok propõe uma corrida contra o tempo: o mundo está acabando e cada minuto conta. Ainda assim, o jogador é incentivado a constantemente parar o que está fazendo para resolver outro desinspirado (senão maldito) quebra-cabeça.
GOD OF WAR: RAGNAROK, UM ERRO EM FORMA DE JOGO
Assim como God of War: Ragnarok, cometi o pecado de me estender muito além do que deveria nesta resenha. Talvez bastasse ter escrito metade do que escrevi, dizendo apenas que não gostei do jogo, e deixar as coisas por isso mesmo. Mas eu precisava tirar a frustração do peito. Não posso dizer que me sinto melhor, infelizmente. Tenho ainda mais de duas páginas de anotações (isto é, de reclamações) que preferi deixar de fora deste artigo, evitando torná-lo redundante. Entretanto, nada do que eu teria para dizer, além do que já disse, seria em benefício do jogo.
Reconheço as qualidades da produção, e só consigo imaginar o quanto de trabalho foi investido aqui por diversos profissionais que se dedicaram a dar o melhor de si para entregar uma sequência à altura de seu predecessor. Mas não posso elogiar um prato ruim, por maior que tenha sido o esforço de quem plantou, colheu e manuseou os ingredientes. Se a refeição chegou fria e sem sal, é porque alguém não se dedicou o suficiente a torná-la apetitosa como deveria ser.
Em muitos aspectos, Ragnarok me lembrou o filme A Múmia (2017), aquele tenebroso remake capitaneado por Tom Cruise. Ambos são produções de altíssimo orçamento, com bons efeitos visuais, atores competentes e uma proposta que tinha tudo para dar certo, mas acabaram sendo um retumbante fiasco. Às vezes, injetar somas absurdas de dinheiro em um projeto não é o suficiente para fazê-lo funcionar. Da mesma forma, gráficos incríveis, um excelente combate e uma caprichada trilha sonora não são o bastante para compensar um roteiro frígido e um ritmo quebradiço.
Não pretendo jogar qualquer eventual DLC, stand alone ou, valha-me deus, futuros jogos da franquia God of War que sigam a atual linha narrativa proposta pela Santa Monica. Estou saturado desse novo Kratos bananão, um Deus da Guerra que não quer guerrear (e que, ao mesmo tempo, não aceita acordos de paz); desse Atreus aborrecente e tiktoker que mais parece escrito para agradar aborrecentes tiktokers como ele. Quero também parabenizar os envolvidos pelas 500 mil linhas de diálogo insosso de Mimir, um personagem que era provavelmente o carinha mais bacana do jogo anterior, mas cuja incapacidade de calar a boca o transformou no personagem mais insuportável da minha memória recente. E o que dizer de Freya e sua dramaticidade padrão Globo de qualidade? Antes uma personagem forte e cheia de camadas, tornou-se aqui uma coadjuvante sem brilho ou personalidade, pronta para ser esquecida e descartada como todo o resto do jogo.
Depois de longos dois meses jogando Ragnarok, fazendo praticamente tudo o que havia para ser feito (na vã esperança de encontrar algo que o redimisse), percebo enfim que meu erro foi esperar demais de um produto que arriscou muito pouco – e entregou menos ainda. No fim das contas, a melhor decisão que tomei foi também a única que poderia aplacar em alguma medida minha decepção: desinstalar o jogo, devolver o CD à caixa e vendê-lo o mais rapidamente possível ao primeiro desavisado que se interessou por ele. Foi um ato terrorista passar essa bomba para a frente, eu sei, mas pelo menos recuperei parte do péssimo investimento financeiro que fiz em God of War: Ragnarok. É uma pena que eu não possa fazer o mesmo com o meu tempo.