Análise A Plague Tale Innocence

A Plague Tale: Innocence é uma fantasia bubônica

À noite, todos os ratos são pardos.

A peste negra foi um dos eventos mais sombrios já experimentados pela humanidade, e uma das causas da crise do feudalismo durante o século XIV. Estima-se que um terço da população europeia (ou mais) tenha morrido por conta da doença em um período de poucos anos, entre 1347 e 1353. A peste bubônica, como também ficou conhecida – graças às protuberâncias em forma de bulbo no corpo dos infectados –, impactou a sociedade medieval em diferentes níveis, reduzindo drasticamente a mão de obra disponível e, consequentemente, a produtividade agrícola do período. 200 anos foram necessários para recuperar a densidade populacional da Europa, e até hoje persistem focos da doença espalhados pelo mundo. Acredita-se que os ratos tenham sido os principais vetores da peste, carregando as pulgas responsáveis por infectar a população.

A Plague Tale: Innocence, ratos

A PLAGUE TALE: O RATO ROEU A ROUPA DO REI

Mesmo sendo uma época tão marcante de nossa história, os tempos de pandemia bubônica me parecem pouco explorados em mídias audiovisuais. E é justamente por preencher essa lacuna que A Plague Tale: Innocence merece elogios – mesmo que lhe atiremos uns tomates podres por sua jogabilidade. A história se desenvolve entre 1348 e 1349, quando a Grande Peste atingiu o sul da França, onde o jogo se passa. Após sofrer um inesperado ataque, a família de Lorde De Rune se desfaz, obrigando a jovem Amicia e seu irmão Hugo a enfrentar um mundo que os fará de rato e sapato. Em sua jornada, os irmãos De Rune se deparam com a Santa Inquisição, milhares de roedores infectados e cidades inteiras devastadas pela praga, uma vista brutal e espetacular da Baixa Idade Média com todos os horrores e miasmas que lhe são devidos.

O jogo é certeiro ao trabalhar o tom de sua história, a atmosfera e, principalmente, o enredo. Com sua pegada grimdark, a narrativa se apropria de um período histórico real ao mesmo tempo que incorpora elementos fantásticos à trama, ganhando pontos pela originalidade e competência com que desenvolve seus argumentos. Os diálogos, em particular, estão entre os mais orgânicos que você pode encontrar em um game, tornando os personagens e suas interações inesperadamente críveis – o que é sempre um desafio, ainda mais em jogos eletrônicos

Apesar de ter um estranho fetiche pela morte de animais (domésticos e selvagens), A Plague Tale: Innocence me conquistou pela estrutura road trip de sua história e pela fenomenal capacidade do estúdio Asobo de contá-la. Trata-se de uma narrativa emocionalmente densa e gratificante, reforçada por uma sóbria trilha sonora à base de violoncelos – o instrumento certo para passar a vibe desoladora de uma pandemia de peste bubônica.

Também merece destaque o tratamento dado pelo roteiro aos ratos, que se comportam como uma única entidade maligna, movendo-se em massa. Sempre que os bichos aparecem, A Plague Tale: Innocence recupera o fôlego, mesclando de maneira consistente um risco histórico (os ratos portadores da peste) com uma ameaça fantasiosa, enquanto os animais se aglomeram e atacam de formas que deixariam qualquer Rei dos Ratos com inveja de sua organização.

A Plague Tale: Innocence, ratos

Há momentos realmente memoráveis ao longo de nossa jornada com os irmão De Rune, como a cena em que precisamos atravessar um campo semeado de cadáveres, pisoteando-os em uma confusão de roupas e membros, e outra em que expulsamos uma feroz população de ratos do interior de um forte. São ocasiões em que A Plague Tale: Innocence faz valer o tempo investido, agraciando o jogador com o que há de melhor para se levar de um jogo: boas memórias. Além disso, o estúdio Asobo foi sensato o suficiente para incluir uma dublagem em francês, que torna a experiência consideravelmente mais imersiva do que a dublagem original, em inglês.

Infelizmente, todas essas qualidades são sabotadas por mecânicas desinspiradas que transformam A Plague Tale: Innocence em um jogo enfadonho e muito pouco divertido de se jogar – o que, sabemos, é muito ruim para um videogame.

EM REVANCHE ROEU O REI O ROSTO DO RATO

O grosso da jogabilidade de A Plague Tale: Innocence consiste em seções de furtividade e puzzles ambientais. Enquanto os quebra-cabeças são geralmente intuitivos e não chegam a prejudicar o andamento da história, os encontros contra inimigos humanos por muito pouco não arruínam o jogo. Não fosse por suas conquistas em todos os outros departamentos, eu não hesitaria em dizer que A Plague Tale: Innocence é, como produto, um jogo ruim. Os trechos de furtividade são repetitivos e oferecem pouca ou nenhuma liberdade na forma de resolvê-los, tolhendo a criatividade do jogador e engessando suas opções. Na esmagadora maioria dos casos (em uma campanha que pode levar até 15 horas para ser concluída), os desafios demandam resoluções bastante específicas para serem vencidos, forçando-nos a uma perpétua sucessão de tentativas e erros até compreender exatamente o que devemos fazer, em qual ordem e com quais instrumentos. 

A Plague Tale parece reconhecer essa falta de diversidade da gameplay, e tenta compensá-la com uma falsa complexidade. Quanto mais avançamos na campanha, mais ferramentas o jogo coloca em nossas mãos: um item que afasta os ratos, outro que os atrai; um para acender o fogo e outro para apagá-lo. Pode parecer uma boa ideia na prancheta, mas na prática é apenas muito trabalho para pouca diversão: como cada problema exige uma solução própria, ter mais ferramentas só nos faz perder mais tempo tentando descobrir qual delas deve ser usada em cada seção, prejudicando o engajamento com a narrativa. E as coisas ficam ainda piores quando o jogo nos força ao combate, já que a velocidade e precisão da mira, assim como a própria movimentação dos personagens, fazem um desserviço à tentativa de injetar mais ação no jogo, tornando os confrontos menos dinâmicos do que frustrantes.

A Plague Tale Innocence, stealth

Penso que A Plague Tale: Innocence teria se beneficiado de uma duração reduzida e jogabilidade simplificada. Tivesse de seis a oito horas de rodagem e meia dúzia de seções furtivas – até quem sabe um combate ou dois –, seria meu candidato a jogo do ano (mesmo tendo saído quatro anos atrás). No entanto, são dezenas de travessias que precisamos fazer entre guardas que se parecem clones uns dos outros, regidos pela mesma desinteligência artificial, enquanto usamos mecanismos e recursos que já estamos carecas de usar em outros jogos de furtividade: lance uma pedra para atrair um inimigo, esconda-se nos arbustos, avance sem ser detectado.

Parece-me que o pessoal da Asobo teve medo de lançar um jogo que não fosse “jogo” o suficiente, ou que se parecesse demais com um filme. Está claro para mim que a verdadeira força de A Plague Tale é sua história e ambientação, e não a jogabilidade. Fosse eu o responsável pela produção, teria dado um passo atrás e, sem vergonha alguma, transformado o jogo em um baita de um walking simulator, no máximo salpicado com um par de puzzles. Sem dezenas de itens, ferramentas de criação ou árvore de habilidades, sem nada que tirasse do jogador a atenção ao que realmente importa: o enredo. 

Entretanto, da forma como saiu, A Plague Tale: Innocence é claramente um jogo com duas metades que se digladiam entre si: uma delas tenta contar uma boa história e imergir o jogador naquele universo, enquanto a outra constantemente o remove de seu estado de imersão para fazê-lo – em plena década de 2020 – empurrar caixas e suas variantes pelo cenário.

PODE COPIAR, SÓ NÃO FAZ IGUAL

Atire a primeira pedra quem nunca se inspirou em outras produções para criar suas próprias, seja uma música, o roteiro de um filme ou um jogo eletrônico sobre ratos infectados com a peste negra. Desde o início da campanha – e ainda mais à medida que ela progride –, fica evidente que a Asobo se espelhou nas obras da Naughty Dog para desenvolver sua criação. O problema é que as influências são tão óbvias que, assim como ocorre com o gênero soulslike, A Plague Tale parece mais seguir uma cartilha do que tentar caminhar com as próprias pernas.

Entre as muitas semelhanças com os jogos da Naughty Dog, posso citar a alta rotatividade dos personagens que nos acompanham, os frequentes e expositivos diálogos e até mesmo um breve período em que ganhamos controle sobre outro personagem que não a protagonista, da mesma forma como controlamos Ellie em The Last of Us. Outra apropriação descarada é emular o sistema de “pontos referenciais” que a Naughty Dog utiliza para indicar o progresso pelo cenário, como prédios e estruturas que inicialmente vemos a distância, mas dos quais nos aproximamos à medida que avançamos em direção ao nosso destino. Da mesma forma, temos aqui um epílogo (talvez inspirado por Uncharted 4) que parece desnecessariamente posicionado após os créditos, como se alguém houvesse recortado a esmo os minutos finais da campanha e os transformado em um epílogo apenas para riscar outro item da lista. Parece o caso da cópia pela cópia, e não uma tentativa de construir algo original a partir de uma influência, o que é triste para um jogo cuja proposta narrativa é tão original.

A Plague Tale Innocence, Hugo

Outro problema é que, assim como Uncharted e The Last of Us, A Plague Tale: Innocence é um grande corredor. Por mais amplos que sejam os cenários, a verdade é que estamos sempre andando em frente, seguindo o caminho preestabelecido pelo roteiro. Porém, os jogos da Naughty Dog não se parecem com corredores até que você pare para analisá-los friamente. Isso porque a desenvolvedora norte-americana consegue, ao contrário da francesa, camuflar esse deslocamento em linha reta ao contextualizar a história em ambientes naturalmente lineares, com saídas e entradas bem definidas, como ruínas, prédios e esgotos, tornando o progresso orgânico.

A Plague Tale: Innocence, por outro lado, não apenas abusa de espaços amplos limitados por várias barreiras, o que é um pecado por si só, como tem seus cenários organizados artificialmente em torno das mecânicas com as quais opera. Assim, em vez de se parecer com um mundo de verdade, o universo do jogo parece projetado especificamente para acomodar os recursos de jogabilidade demandados em cada seção, sendo repleto de alavancas, elevadores, retângulos de grama alta e tochas perfeitamente equidistantes umas das outras, além de distrações posicionadas a meio metro de cada inimigo. É verdade que todo cenário em um jogo eletrônico é construído em função das mecânicas, mas os grandes jogos nos quais a Asobo se inspira jamais deixam transparecer essa intenção, ocultando-a atrás de ambientes que transmitem naturalidade, como se o cenário pudesse existir tanto dentro quanto fora do jogo.

Sei que parece injusto (e é mesmo) comparar um jogo de menor orçamento como A Plague Tale com os arrasa-quarteirões da Naughty Dog. Mas quem se colocou nessa posição, em primeiro lugar, foi a própria Asobo, ao tentar de todas as formas emular os passos da concorrente sem, contudo, compartilhar do mesmo talento.

A Plague Tale Innocence, Amicia

A PLAGUE TALE: INNOCENCE, UM JOGO DE GATO E RATO

Tenho certeza de que morri mais vezes nas 12 horas que levei para concluir A Plague Tale: Innocence do que em toda a campanha de Alien: Isolation ou Demon’s Souls, para citar jogos que terminei recentemente. Não porque o jogo seja complexo, longe disso, mas por ser obtuso. Existe, como já afirmei, pouquíssima liberdade para vencer os desafios de qualquer outra forma que não aquela planejada pelos desenvolvedores, de modo que é preciso testar diferentes possibilidades até encontrar uma que funcione. Justamente por isso, a dificuldade deriva não do desafio em si, mas da falta de clareza do jogo para comunicar aquilo que espera do jogador – exigindo quase nada de habilidade, mas um bocado de paciência.

Como turismo virtual, A Plague Tale: Innocence é uma excelente janela para um dos mais assombrosos períodos da história humana, contextualizando no mundo real um criativo conto de fantasia sombria. Mas nem só de atmosfera vivem os jogos, e é precisamente na jogabilidade que o estúdio Asobo derrapa e capota sua charrete na curva. Por isso, se estiver interessado em experimentar A Plague Tale: Innocence (e eu realmente sugiro que você faça isso), evite comprar rato por lebre e saiba, de antemão, o que está levando para casa: um excelente enredo prejudicado por uma gameplay insípida, mecânicas superficiais e muitas telas de morte.

Fosse um livro ou minissérie, tenho certeza de que A Plague Tale seria fantástico. Como jogo, entretanto, é apenas um bom filme interativo – ainda que vitimado pelo excesso de interatividade. Há uma ótima história sendo contada aqui, não tenha dúvida; apenas não usaram as ferramentas certas para contá-la.

2 comentários em “A Plague Tale: Innocence é uma fantasia bubônica”

    1. É que nem aquele meme do “Tava ruim, tava bom, agora parece que piorou” – a cada cinco minutos o jogo me tirava o sorriso da cara, apenas para devolvê-lo logo depois. Os sentimentos que ficam são conflitantes. É curioso notar que a maioria das resenhas sobre A Plague Tale: Innocence não cita esses problemas que mencionei, o que sempre me fez imaginar que o jogo era muito melhor do que ele realmente é (no sentido da jogabilidade, como expliquei no texto). Estou atualmente jogando a sequência, A Plague Tale: Requiem. Será melhor que o primeiro jogo? Será pior? Saberemos em breve, tão logo a resenha se materialize nos domínios deste humilde site. Obrigado pela leitura, Gustavo!

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