Análise Milk Inside a Bag of Milk

Milk Inside a Bag of Milk Outside a Bag of Milk: mas é o quê?

Uma visual novel sobre laticínios e doenças mentais.

Tive uma adolescência difícil, durante a qual cheguei a dormir na rua em mais de uma ocasião, apenas para fugir do inferno que me esperava em casa. Minha mãe era abusiva e mentalmente perturbada, do tipo que puxava facas em discussões e batia de propósito seu carro no carro dos outros. Uma de suas maiores proezas, mesmo sendo biruta, foi convencer uma psiquiatra de que o maluco da família era eu. Assim, com aprovação médica, fui “tratado” com doses injetáveis de risperidona, um potente antipsicótico que, sob ameaças de internamento psiquiátrico, médicos e familiares forçaram para dentro do meu corpo. 

A melhor descrição que posso dar sobre os efeitos colaterais é que o remédio simplesmente derreteu o ser humano que havia em mim. Por quase um ano fui incapaz de me sentir triste, mas também de me sentir feliz, satisfeito ou esperançoso. Virei um garoto-robô, sem objetivos ou sentimentos de verdade correndo dentro de mim. A sensação de estar anestesiado era tanto emocional quanto física, e no auge dos meus 15 anos até mesmo a masturbação havia perdido a graça. Tornei-me uma casca amorfa, um punhado insensível de pele e ossos, e quando me olhava no espelho o que me olhava de volta não era eu, pois não havia ninguém realmente vivendo dentro de mim.

Milk Inside a Bag

Nesse meio-tempo, depois de anos de um doloroso vaivém, meus pais enfim se separaram. Ou, melhor dizendo, meu pai saiu de casa e foi viver a vida dele, enquanto fiquei para trás morando com minha mãe, durante um divórcio tão belicoso que até mesmo a polícia acabou, a certa altura, envolvida na peleja. Sem outra figura adulta para conter a loucura de mamãe dentro de casa, as coisas escalonaram rapidamente no ambiente doméstico e, poucos meses depois, em um sábado que poderia ter sido como qualquer outro mas não foi, decidi tirar minha própria vida.

Aproveitei que mamãe estaria fora de casa até tarde da noite e saqueei a farmacinha escondida no armário, dezenas de remédios com todo tipo de efeitos colaterais à disposição. Li a bula de cada um e selecionei os mais potentes, aqueles cuja superdosagem poderia resultar em coma ou morte, e mandei 60 ou 70 cápsulas para dentro com um copo de uísque roubado da adega. Olhando em retrospecto, tirar minha própria vida não pareceu uma decisão importante, nem fui capaz de sentir algo – dor, medo ou tristeza – para além do mais profundo tédio enquanto me deitava na cama e esperava os comprimidos fazerem efeito. Em um momento eu estava lá, pendendo na borda da realidade, e no momento seguinte mergulhei no vazio, tragado por um buraco negro que se abriu atrás dos meus olhos.

Acordei muitas horas depois na meia-luz de um quarto hospitalar, ainda grogue da sedação, com um cano descendo pelo meu nariz até o estômago, salvo por uma lavagem estomacal de emergência. Inesperadamente, minha vida melhorou muito depois disso: fui morar com meu pai, deixei de lado o antipsicótico e, com o tempo, voltei a me interessar pelo mundo e até mesmo a ter sentimentos como um garoto de verdade. Ainda que mamãe tenha falecido horrivelmente poucos anos depois, jogando-me outra vez em uma espiral de tristeza e ansiedade, sinto que me saí bem no Grande Esquema das Coisas ao conseguir, quase vinte anos atrás, atravessar minha adolescência e sobreviver a mim mesmo.

MILK INSIDE A BAG OF MILK INSIDE A BAG OF MILK

Chegando com essa bagagem nas costas, devo dizer que me considero o público-alvo da série A Bag of Milk, um par de novelas visuais que trata exatamente dos temas que tanto fizeram sombra na minha vida: famílias quebradas, abuso infantil, suicídio e medicações pesadas. A grande diferença é que, ao contrário de mim, a protagonista é mesmo doente, sofrendo de um leque sintomático que aponta tanto para um transtorno obsessivo-compulsivo quanto para um quadro de depressão e fobia social, sem falar na penca de alucinações causadas pela medicação.

Milk Inside a Bag

Em Milk Inside a Bag of Milk Inside a Bag of Milk, a primeira parcela da série, somos apresentados a uma personagem sem nome que nos inventa em sua cabeça para, como um amigo imaginário, ajudá-la a cumprir uma missão enganosamente simples: comprar leite e voltar para casa. O jogo inteiro é uma espécie de brincadeira que a menina cria para si mesma, imaginando ser a protagonista de uma visual novel – o que acarreta ótimas quebras da quarta parede e usos de metalinguagem. 

A questão é que, devido a seus distúrbios neurológicos e aos efeitos colaterais dos remédios que toma, uma tarefa tão básica quanto comprar leite é para a garota um incalculável desafio: dentro do mercado, criaturas se arrastam pelos corredores, ameaçando-a com a terrível letra “O” – aberta e redonda como uma boca cheia de dentes. Na fila, monstros impacientes aguardam sua vez enquanto a mente de nossa heroína salta inquieta de um pensamento confuso para outro, temendo sua vez de enfrentar o caixa. Some a essas dificuldades neuropsicológicas uma baixa autoestima, um grande trauma recente e uma voz (a do jogador) que pode tanto auxiliar quanto espezinhar a pobre menina, e comprar o tal do saco de leite – bem como retornar para casa – se torna uma tarefa mais cascuda que qualquer dragão cuspidor de fogo em um RPG.

Milk Inside a Bag of Milk Inside a Bag of Milk acerta em cheio na arte pixelada, que retrata o mundo pelos olhos abstratos da protagonista. Vemos tudo em tons de vermelho (uma escolha artística justificada pela narrativa), ainda que muitas vezes não seja possível identificar exatamente o que estamos vendo. Um ser de contornos indecisos sugere uma pessoa parada no corredor do supermercado, mas também pode ser uma sombra, um extraterrestre ou um amontoado de carne com olhos. O jogo estimula a capacidade interpretativa do jogador, negando-se a oferecer respostas mastigadas e permitindo múltiplas leituras a quem se debruçar sobre ele, sendo não apenas inovador em sua abordagem, mas competente na direção de arte e escrita.

A experiência consegue ser ao mesmo tempo densa e concisa, terminando exatamente onde deveria terminar. Depois de comprar o leite e voltar para casa, a menina não precisa mais de nossa assistência. A brincadeira da visual novel, que a ajudou a enfrentar os horrores de comprar leite no mercadinho, é estilhaçada e desfeita quando, outra vez em contato com a realidade doméstica, a menina é submetida novamente ao governo tirânico de sua mãe, com quem divide o apartamento após uma traumática fragmentação familiar. Com muitas qualidades e nada que possa ser realmente apontado como defeito, Milk Inside a Bag of Milk Inside a Bag of Milk é um fantástico exercício estético e narrativo que, para nos convidar à reflexão, não precisa de mais do que uma história caleidoscópica sobre uma garota comprando um saco de leite. Um saco de leite dentro de outro saco de leite. Um saco de leite dentro de um saco de leite dentro de…

Milk Inside a Bag

MILK OUTSIDE A BAG OF MILK OUTSIDE A BAG OF MILK

Se Milk Inside a Bag of Milk Inside a Bag of Milk sabe reconhecer sua essência e trabalhar instrumentalmente com as limitações que têm, unindo a subjetividade do enredo a um design onírico e perturbador que reflete a mente da própria protagonista, por outro lado sua sequência, Milk Outside a Bag of Milk Outside a Bag of Milk, falha justamente por mostrar demais aquilo que, no original, ficava por conta das capacidades interpretativas do jogador. Visual e narrativamente, Outside é muito menos interessante do que seu antecessor, ainda que seja tecnicamente mais caprichado. Sai a arte pixelada e confusa que marcou o primeiro jogo para dar lugar ao traço agradável e padronizado de um anime tradicional, enquanto a críptica história de antes se torna agora um longo e expositivo diálogo com a protagonista do jogo.

Milk Inside propunha um desafio muito claro: comprar leite no mercado sem perder a cabeça. Já a sequência – que começa exatamente onde termina o primeiro jogo – não tem um objetivo claro além de, me parece, revelar mais sobre uma protagonista cujo charme era justamente a personalidade etérea. Além disso, a narrativa exagera na descrição das alucinações (um exagero enfatizado pela má qualidade da tradução) e nos sintomas da menina, que agora parece sofrer de tudo um pouco: esquizofrenia, bipolaridade, TDAH, dependendo das necessidades da narrativa.

Posso estar interpretando muito literalmente esse aspecto do jogo, é verdade, mas da forma como vejo, Inside a Bag of Milk acertou ao não etiquetar a(s) doença(s) da protagonista, sugerindo certos perfis sem se comprometer com nenhum deles. Outside a Bag, ao contrário, tenta encaixar a personagem sem nome em múltiplas desordens psiquiátricas, o que me soa mais como um desrespeito a quem sofre de um ou outro problema do que, como tenta sugerir o roteiro, algum tipo de reconhecimento ou estranha homenagem a cada transtorno mental reconhecido pelo DSM. E, falando em roteiro, Outside parece não entender o que fez do original uma obra tão peculiar, e toma a estranha decisão de se aprofundar na vida da protagonista ao mesmo tempo que, ironicamente, acaba sendo um jogo muito mais superficial que o primeiro.

Milk Outside a Bag of Milk dura consideravelmente mais que Milk Inside a Bag of Milk e tem, estimo, o triplo de texto embutido em suas árvores de diálogo, mas ainda assim diz muito pouco quando comparado ao anterior. De tão diferentes, os jogos nem parecem feitos pela mesma pessoa, e tive que checar duas vezes para ter certeza de que o russo Nikita Kryukov, e não algum gêmeo maligno, estava mesmo por trás de ambas as produções.

Milk Inside a Bag

A BAG INSIDE MILK OUTSIDE A BAG

A boa notícia é que, pelo menos no PC, os jogos podem ser adquiridos separadamente. Por isso, se você confia nas palavras de um estranho para decidir o que vai ou não colocar na sua lista de jogos, recomendo efusivamente experimentar Milk Inside a Bag of Milk Inside a Bag of Milk, mas passar longe de sua sequência, que se afasta da ousadia de seu irmão mais velho para se aproximar muito mais de uma novela visual genérica (só cuidado para não confundir os nomes).

Gostaria que houvesse uma terceira parcela da série A Bag of Milk para que pudéssemos tirar a melhor de três, quem sabe mostrando a protagonista mais velha, em algum tipo de relacionamento com um parceiro ou parceira (Milk Beside a Bag of Milk?), ou quem sabe criando um rebento que sofra dos mesmos problemas que ela na adolescência – uma bola já levantada pelo final de Outside a Bag –, ou ainda, quem sabe, tornando-se uma psicóloga para ajudar outras pessoas a lidar com seus próprios problemas, assumindo o papel da “voz” que nós, jogadores, interpretamos no jogo original.

Ou, quem sabe mesmo, seja melhor que as coisas permaneçam como estão, sem outras iterações que progressivamente enfraqueçam o nome da franquia apenas para ordenhar a vaca do capitalismo. Afinal, nem toda obra merece (ou precisa) de uma sequência, e muitas vezes é preferível apenas não fazer nada do que se descobrir chorando tardiamente pelo laticínio derramado, todo esse leite espalhado fora de um saco de leite fora de um saco de leite fora de um saco de…

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