The Invincible é um foguete sem pressa de decolar

Que a ciência esteja com você.

Qual é o papel da humanidade no amplo quadro geral do universo? Até onde podemos justificar a interferência humana em diferentes e desconhecidos biomas em defesa da pesquisa científica? Seriam as máquinas o próximo passo natural na escalada do processo evolutivo? Essas são apenas algumas das perguntas que The Invincible, desenvolvido pela Starward Industries e lançado em novembro deste ano pela 11 bit studios, tenta responder em suas quase 10 horas de duração, propondo-nos um exercício filosófico inserido em um bem azeitado contexto de hard science fiction.

Inspirado no livro homônimo de Stanislaw Lem (escritor de ficção científica responsável por obras como Solaris e O incrível congresso de futurologia), The Invincible é um jogo de queima lenta, mas profundamente gratificante em suas entregas. A narrativa acompanha uma equipe de pesquisa interplanetária que, ao pousar no planeta Regis III, encontra-se no centro de um mistério de milhões de anos envolvendo a fauna local.

O game se utiliza de uma estética atompunk e retrofuturista que muito lembra os jogos da série Fallout, com naves e equipamentos projetados com base em ilustrações da década de 50 – um futuro no qual foguetes imensos, botões coloridos e monitores de fósforo verde dominavam o imaginário popular. A escolha visual, vale lembrar, está de acordo com o livro no qual o jogo se baseia, lançado no já longínquo ano de 1964.

THE INVINCIBLE: LIVRO E JOGO

A obra literária de Lem¹ descreve o pouso e as subsequentes desventuras da tripulação da nave Invencível em Regis III. No livro, acompanhamos a história sob a perspectiva do protagonista Rohan e de uma porção de outros personagens masculinos, uma vez que, aparentemente, não existem mulheres entre as dezenas de astronautas e cientistas do cruzador Invincible – uma espaçonave com altura de vinte andares, praticamente um edifício com propulsores a jato.

Ainda que o jogo decorra no mesmo planeta, e as descobertas feitas ao longo da narrativa espelhem as revelações do livro, foram feitas generosas e bem-vindas mudanças pelos desenvolvedores. Para começo de conversa, a história se inicia antes dos eventos principais do livro, com personagens criados exclusivamente para o game – o que permitiu a criação de uma história livre de amarras e sem excessivo comprometimento com o texto original.

A narrativa do jogo segue a história da nave Dragonfly, muito menor em propósito e escopo que a Invencível, trazendo a bordo apenas seis tripulantes. Mas a maior mudança em relação à obra de Lem é o fato de que temos como protagonista a bióloga Yasna, trazendo uma refrescante lufada de igualdade de gênero para uma história originalmente bastante testosterônica.

Como era de se esperar, há muitos paralelos entre o livro e o jogo, especialmente temáticos – incluindo debates sobre inteligência artificial, nanorrobótica e formas de vida não sencientes que foram considerados pioneiros na literatura de Stanislaw Lem –, mas também em relação a personagens, equipamentos, locais, cenários e outros easter eggs que, atendendo aos pedidos da produtora, vou me ater de discutir aqui.

Dependendo de suas escolhas (há várias delas a serem feitas ao longo do jogo), você encontrará um entre mais de dez finais possíveis. Alguns deles criam furos que interferem diretamente na narrativa do livro, criando uma espécie de universo alternativo à obra original, enquanto outros refletem importantes acontecimentos do texto de Lem. Testei diversos finais possíveis, e posso dizer que eles são variados o suficiente para estimular a rejogabilidade. Há conclusões apoteóticas, outras deprimentes e algumas que são apenas mornas ou inconclusivas. A boa notícia é que, se não gostar do final que recebeu, você pode carregar o último save para tomar decisões diferentes, sem necessariamente rejogar tudo de novo.

Esse cara teve um final inglório.

O AMANHÃ NUNCA CHEGA

A narrativa fragmentada de The Invincible (o jogo, não o livro) cria uma aura de mistério em torno do passado e do futuro da protagonista, que acorda in medias res sem saber direito onde está nem como chegou ali, vítima de uma amnésia que será decifrada ao longo da aventura.

Uma excelente decisão da desenvolvedora foi criar um sistema de história em quadrinhos, acessível pelo menu, que vai se desenvolvendo de acordo com nosso progresso e as escolhas que tomamos no decorrer do jogo. É um recurso simples e ao mesmo tempo sofisticado que ajuda a compreender as complexas idas e vindas da narrativa, e que eu, particularmente, gostaria de ver implementado em mais jogos.

Mantive-me alheio às resenhas do jogo até agora, para evitar que contaminassem minha opinião, mas prevejo muita gente reclamando da morosidade de The Invincible. Como mencionei no início do texto, trata-se de um game de queima lenta, que em muito reflete a natureza da obra em que foi baseado e do próprio gênero hard sci-fi, mais orientado a esmiuçar os pormenores de questões científico-sociais do que, digamos, descrever batalhas espaciais ou tiroteios intergalácticos.

Nesse sentido, é importante saber que temos aqui, em termos de ritmo, uma obra mais semelhante aos injustiçados Prometheus e Aniquilação do que (para manter a comparação no reino cinematográfico) a blockbusters dinâmicos e canastrões como Perdido em Marte – ainda que o visual do jogo possa sugerir exatamente o oposto. Trata-se de um game que exige investimento narrativo e emocional do jogador, pedindo a ele que faça o exercício de se colocar no lugar da personagem para que a experiência como um todo seja devidamente apreciada. Do contrário, a longa exposição a diálogos explicativos e o desenvolvimento desapressado parecerão simplesmente maçantes. Por outro lado, quem tiver a devida paciência encontrará aqui uma história consistente e muito bem conduzida, do tipo que poucos jogos conseguem entregar hoje em dia.

O grande trunfo de The Invincible está no senso de descoberta e na exploração ambiental, e seria injusto esperar qualquer recompensa maior que a própria resolução dos mistérios que envolvem Regis III. O planeta que serve de cenário para o jogo é capaz de, por si só, justificar toda a experiência, oferecendo paisagens que estão entre as mais belas que já vi em um videogame independente – estimo que passei pelo menos uma hora brincando com os recursos do modo de fotografia.

Também a trilha sonora auxilia a criar uma atmosfera de puro arrebatamento: desde o ruído dos passos e apertar de botões até o bipe das máquinas e o rolar de pedras deslizando sob os pés da personagem em uma encosta íngreme, todo o trabalho de som é incrivelmente tátil, tornando obrigatório o uso de fones de ouvido em volume suficientemente generoso para dar corpo à imersão proposta – o tipo de imersão, aliás, que eu esperava ter com Observation, outro jogo espacial focado em narrativa, não fosse sua jogabilidade truncada e seu timing descalibrado, problemas que inexistem aqui.

Isso posto, cabe dizer que o aspecto slow burn do jogo não impede Yasna de constantemente extrapolar sua posição de cientista para se entregar a peripécias dignas de um filme hollywoodiano, sobrevivendo por um triz a situações que provavelmente matariam qualquer ser humano com dois dedos a menos de sorte. Pessoalmente, vejo com maus olhos a escrita e condução de protagonistas que estão sempre olhando nos olhos da morte sem nunca abraçá-la de fato. Essa é minha principal birra com Gravidade, por exemplo, que seria um filme muito melhor se a personagem de Sandra Bullock simplesmente morresse em algum momento.

No caso de Yasna, me incomodou a insistência do roteiro de colocá-la seguidas vezes em risco apenas para mostrá-la escapando relativamente ilesa no momento seguinte, quase que por milagre, sem que isso servisse a qualquer avanço narrativo que se justificasse para além da transposição de cenário ou da simples necessidade de apresentar outra cena de ação. O próprio jogo chega a levantar uma sobrancelha autoindulgente quando, já próximo ao fim, Yasna contabiliza a quantidade de vezes em que quase vestiu o paletó de madeira – quatro ou cinco, pelo menos até aquele momento.

Eu não me importaria de ter um pouco menos de “aventura” em prol de uma história mais realista, com menos momentos de quase morte e mais cenas de diálogo e reflexão, mas me parece certo concluir que foi uma escolha dos desenvolvedores para dinamizar o andamento do jogo, talvez prevendo possíveis críticas à falta de tiros e explosões em um game espacial em primeira pessoa.

INVENCÍVEL?

Tanto o jogo quanto o livro trazem uma boa dose de reflexão crítica em seu texto, o que pode ser visto já pelo nome. Seria a expressão “invincible” um atestado da infalibilidade da nave-título ou, au contraire, uma afirmação zombeteira sobre a incapacidade do ser humano de reconhecer suas próprias limitações? E quem é realmente invencível: a espaçonave, a humanidade ou, quem sabe, outra coisa? Há muito para se pensar e discutir quanto aos temas propostos pela narrativa. Gostaria de me aprofundar neles, mas há um pedido bastante explícito e sem margem para interpretações no press-release encaminhado pela desenvolvedora para que não compartilhemos informações relevantes sobre os mistérios do jogo, a fim de estimular os jogadores a descobrir tudo por conta própria (ainda que não haja muitas surpresas para quem já conhece o livro). De todo modo, fique à vontade para iniciar uma discussão cheia de spoilers na sessão de comentários, e me unirei a você em breve – jamais nos pegarão lá.

Além de ser competente em quase tudo o que se propõe a fazer (excetuados eventuais deslizes técnicos e de roteiro que não chegam a tirar o brilho de seus acertos), The Invincible é uma bonita homenagem ao trabalho de Stanislaw Lem, dando vida a um rico universo até então restrito à literatura. Jogos como The Witcher, Dear Esther e Metro 2033 já provaram a capacidade dos jogos de transporem habilmente obras literárias para mídias interativas. The Invincible chega para reforçar essa lista de bem-sucedidas adaptações. E vou te dizer: desde que concluí o jogo, não parei de pensar nas infinitas e ainda não exploradas possibilidades de adaptação de nosso vasto universo literário, em todas as estrelas de uma constelação textual que poderiam ser transformadas em jogos brilhantes.

Entre todos, há um livro em especial que não quer sair da minha cabeça: Eu sou a lenda, de Richard Matheson. Lançado em 1954 (apenas dez anos antes de The Invincible), o livro conta a história do último homem vivo em um mundo infestado por vampiros. Muito diferente do filme estrelado por Will Smith, o romance retrata o protagonista em uma jornada ébria e solitária enquanto, noite após noite, os infectados se reúnem ao redor de sua casa para convencê-lo a se juntar a eles – um velho amigo passa a madrugada gritando seu nome e vampiras nuas dançam na calçada tentando atraí-lo. Até já consigo imaginar o cenário do jogo, com veículos antigos capotados pelas ruas e cartazes de filmes em preto e branco colados em becos escuros, sem ninguém vivo para recolhê-los. Uma dinâmica de dia e noite trespassaria o jogo, de modo que a exploração ocorresse durante o dia, estando a noite reservada ao cuidado da casa e ao reforço de barricadas, em um processo simplificado de gerenciamento de base. Quando fecho os olhos, vejo um jogo em primeira pessoa com elementos de survival horror, mas extensivamente voltado à coleta de recursos, com foco na narrativa e uma trilha sonora inspirada por clássicos da Hammer, famosa produtora de filmes de horror da década de 50. Mas então volto a abrir os olhos e me vejo perplexo pelo fato de ninguém ainda ter produzido um game inspirado na obra de Matheson – um livro que fiz questão de ler pelo menos três vezes em diferentes versões, digitais e em celulose.

Mas não deixarei de ter esperança: jogos como The Invincible estão aqui para abrir as portas e mostrar um caminho possível. Quem sabe, em algum momento no futuro próximo, tenhamos prateleiras digitais cheias de jogos baseados em livros, coçando uma coceira que está apenas começando². Resta a nós, meros e mortais consumidores, amantes de livros e jogos, esperar que o exemplo seja seguido. Enquanto isso, refestelemo-nos tanto quanto possível em jogatinas e leituras, em leituras e jogatinas, ocasionalmente parando para discutir um pouco sobre ambas neste antropofágico e muito modesto website.

E você, que livro gostaria de ver transformado em jogo?

 

 

 

 

¹ Ao receber o código de review de The Invincible, tentei de todas as formas adquirir o romance de Lem, a fim de escrever um artigo comparando a narrativa literária com o produto audiovisual. Foram duas semanas de busca incessante. Acontece que o livro nunca foi lançado oficialmente no Brasil – o mais perto que tivemos de uma tradução propriamente dita foi quando a editora Livros do Brasil, ironicamente sediada em Portugal, lançou em 1979 uma versão em português lusitano intitulada A nave Invencível, edição de número 264 da coleção Argonauta. Ainda que circulem algumas poucas cópias em território nacional, elas estão majoritariamente sendo vendidas em conjunto com o restante da coleção, tornando impossível comprá-las separadamente. Descobri um sujeito vendendo uma edição avulsa em Portugal, mas calculei que, por conta da burocracia alfandegária de nosso país, o livro demoraria pelo menos três semanas para chegar, atraso que tornaria inviável a produção deste artigo. Como última opção, pensei em comprar o e-book em inglês, mas a preguiça de ler quase 300 páginas no computador, somada ao tempo que levaria entre finalizar o livro e escrever este texto, acabaram por minar minha boa vontade. No fim, recorri a resenhas, artigos e textos comparativos para me situar em relação à obra de Lem. Uma pena, mas fica aqui registrado meu apelo para que uma editora brasileira compre os direitos da obra a fim de lançá-la oficial e decentemente em terras tupiniquins – a Aleph seria minha escolha óbvia.

² Coincidência ou não (provavelmente não), a série de livros The Witcher, assim como os jogos nela inspirados, é tão polonesa quanto Stanislaw Lem e a desenvolvedora Starward Industries, cujo fundador inclusive trabalhou na CD Projekt Red, responsável pelos jogos do bruxeiro. Viva a Polônia!

Este texto foi produzido com uma cópia gentilmente cedida pela Evolve.

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