Olá, meu nome é Yohan e eu estou há dez minutos sem apostar minha vida em Buckshot Roulette. Eu sei, nunca deveria ter experimentado em primeiro lugar. Mas é o que dizem: em um momento você está brincando com jogos experimentais na itch.io, degustando um indiezinho aqui e ali apenas por diversão, e quando menos percebe acaba envolvido com obras pesadas, daquelas que fazem você se atrasar para o trabalho mesmo trabalhando de casa. Seus amigos e familiares estavam certos, você percebe tarde demais: jogos independentes são mesmo uma porta de entrada para coisas mais perigosas.
Mas chega uma hora na vida de todo viciado em que é preciso dizer não, eu não quero mais isso para a minha vida, não quero ser refém de um vício que me mantém grudado à cadeira por “só mais uma partida” enquanto o trabalho se acumula metaforicamente sobre a mesa. Por isso não, eu digo, não vou mais apostar minha vida em Buckshot Roulette, sob hipótese alguma, não depois desta última partidinha, eu prometo.
Sem qualquer autocontrole e ignorando minhas obrigações profissionais, desperto um minuto mais tarde no banheiro sujo de uma boate, ingerindo pílulas e captando vibrações como se fosse o protagonista de um romance de Burroughs. Uma pichação na parede me pergunta se estou com medo – não estou – e avanço depressa para a saída. A porta do banheiro se abre com um estouro ao encontrar a sola da minha bota, dando acesso ao mezanino. Vindo lá de baixo, de alguma pista de dança povoada por criaturas ébrias, eleva-se um mantra eletrônico que ribomba nas paredes em baixa resolução. Atravesso o mezanino a passos largos, sem um minuto a perder, e logo outra porta se abre oferecendo passagem ao meu pé direito – não há tempo para sutilezas.
A sala tem um aspecto de ferrugem e decadência, como o quartinho dos fundos de um bar a serviço da máfia, e as paredes grossas abafam tanto o barulho que vem de fora quanto o barulho feito aqui dentro. Ao redor, o espaço é ocupado quase inteiramente por uma mesa robusta e aparelhos eletrônicos de procedência duvidosa. Do lado oposto da mesa, em resposta à minha chegada, um crupiê satânico é regurgitado sem cerimônia das sombras, seu rosto rasgado por um sorriso maligno. Com dois buracos no lugar dos olhos, ele pede – como sempre – que eu assine um contrato renunciando à minha própria segurança. Tento inserir um nome diferente a cada nova tentativa, sem abusar do limite de letras disponíveis: Deus, Demo, Judas, Juju. Mas hoje tenho pressa, por isso seleciono a primeira letra que vejo e assino de uma vez o contrato, que é para começarmos logo a brincadeira.
CARTUCHOS NA MESA
O jogo em si – uma roleta-russa com escopeta – parece simples, mas tem complexidade de sobra. A cada rodada, o crupiê insere determinado número de cartuchos na câmara da arma, informando-nos quantos deles são de festim e quantos são reais. No entanto, nem ele nem nós conhecemos a ordem em que os cartuchos foram inseridos. Por isso, contar a munição é imprescindível para obter vantagem sobre o oponente, tal como contar as cartas em uma partida de blackjack. Sabendo que a escopeta foi carregada com três cartuchos de festim e dois cartuchos reais, eu me pergunto, qual é a probabilidade de que o próximo tiro estoure minha cabeça após disparar um cartucho de mentira?
Para alguns, isso pode soar como o enunciado de uma questão matemática, e devo dizer que nada poderia estar mais próximo da verdade. Buckshot Roulette é pura análise probabilística e teoria dos jogos, exigindo raciocínio e memorização tão afiados quanto os dentes do crupiê contra o qual apostamos.
A escopeta se alterna entre nossas mãos e as mãos do adversário, começando sempre conosco. Devemos então escolher entre disparar contra nós ou contra ele. A vantagem de disparar contra nós mesmos é que, se o cartucho for de festim, continuamos em posse da arma. A desvantagem é que, se for um cartucho de verdade, explodimos nossa própria cara. Seremos ressuscitados pouco depois pela descarga elétrica de um desfibrilador, é verdade, e poderemos retornar à partida – mas a quantidade de cargas do equipamento é limitada, e poucos erros são o bastante para nos encaminhar outra vez ao banheiro do início do jogo.
O que realmente complica as coisas, entretanto, são os itens aleatórios que recebemos (nós e o crupiê demoníaco) a cada rodada, quando a arma é recarregada com novos cartuchos. Temos de tudo um pouco, mas só coisa boa: cigarro, cerveja, canivete – cada um deles útil a sua maneira. Assim como na vida real, dar um trato no pulmão recupera a saúde, enquanto a faca pode ser usada para serrar o cano da escopeta, potencializando o estrago. Já a cervejinha, que não parece nada gelada, serve para ejetar um cartucho da arma e facilitar o cálculo dos cartuchos restantes. Também é possível prender o adversário por um turno inteiro com um par de algemas, ou identificar o atual cartucho na câmara com auxílio de uma lupa. E, se quiser aumentar as apostas, o modo “Dobro ou Nada” – liberado após a conclusão do jogo – disponibiliza ainda mais itens, como um celular que nos informa sobre o futuro e um medicamento, certamente fora da validade, que tem os mesmos 50% de chance de nos curar ou de provocar nossa morte.
Combinados, todos esses elementos tornam Buckshot Roulette um verdadeiro exercício de cálculo probabilístico e raciocínio lógico, já que nosso principal objetivo é manter a arma conosco pelo maior tempo possível e apontada para a cabeça certa. Calcule mal seus passos e você acabará na extremidade errada da escopeta, vendo seu progresso ser jogado no lixo enquanto a tela escurece e você morre outra vez, sendo novamente obrigado a dizer a si mesmo que não, agora chega, não dá mais para continuar apostando sua vida em Buckshot Roulette, não depois desta que, de pés juntos, você jura que será realmente a última partidinha – e lá vai você para o banheiro sujo outra vez.
BUCKSHOT ROULETTE: VÍCIO, DESGRAÇA E UM CANO FUMEGANTE
Criado pela mente perturbada de um homem só, Buckshot Roulette ativou em mim um tipo de ansiedade que há tempos andava dormente. Uma ansiedade cíclica, daquelas que alimentam a si mesmas, diferente da ansiedade gerada por um jogo como Alien: Isolation. Toda vez que eu perdia – minha vida, meu tempo e a partida –, eu ficava mais aflito para voltar e tentar de novo, para voltar e vencer a banca, mesmo sabendo que a banca sempre ganha. A estética granulada do jogo (com sua paleta de cores terrosas), as animações agressivas e a narcótica trilha sonora me deixaram totalmente desconfortável, mas de algum modo extasiado, criando um misto de sensações que só posso definir como prazer culposo. Não foi uma sensação de todo ruim, quero dizer, mas a própria temática do jogo – com toda a violência inerente ao ciclo de assassinatos & suicídios que perpetramos – também não é exatamente agradável.
Enquanto jogava, cresceu em mim a incômoda sensação de que eu estava fazendo algo de errado, algo de ilícito – um sentimento reforçado tanto pela atmosfera criminalesca da boate quanto pela aparência inumana do crupiê. Mesmo assim, para meu horror, parecia impossível parar de jogar. E não digo isso como um elogio, mas sim como um alerta para quem não pode se dar ao luxo de perder uma manhã inteira de trabalho para o vício: fuja de Buckshot Roulette e, assim como eu, nunca mais olhe para trás, não senhor, nunca mais depois de só mais esta partidinha.
Esta resenha foi escrita com uma cópia do jogo gentilmente enviada pelo leitor e amigo do site Iago França de Lima. Se você também quiser colaborar conosco, considere nos apoiar com um jogo da nossa lista de desejos ou com modestas quantias em nossa campanha no Apoia.se. O Antropogamer agradece.