Poucos jogos são tão estressantes quanto Dead Space (2008). Nesse survival horror de ficção científica, interpretamos um engenheiro ordinário que procura pela namorada em uma espaçonave à deriva. Para nosso azar, logo nos descobrimos em meio a uma infestação de necromorfos – cadáveres reanimados por forças alienígenas –, e daí em diante nos caberá a missão de sobreviver aos perigos da nave mineradora USG Ishimura, na esperança de escapar de lá com o que restar de nossa sanidade.
Tão logo o primeiro inimigo surge na tela, uma massa disforme de tendões e músculos expostos, fica claro que Dead Space não está para brincadeira. Esse é um jogo sério, comprometido em ser o jogo de horror mais assustador de sua geração. A cada cinco minutos (em uma campanha que durou para mim cabalísticas 13 horas) há um inimigo saindo das paredes, ou nos esperando do outro lado da porta, ou descendo do teto para cair exatamente atrás de nós enquanto nos defendemos dos inimigos à frente.
Os necromorfos são implacáveis. Atire em suas pernas e eles se arrastarão sobre os cotovelos. Remova a cabeça e serão tomados por uma fúria assassina, girando às cegas pelo cenário. A única forma de se livrar deles é queimando-os ou cortando seus membros. “Corte fora seus membros”, aliás, é uma mensagem que o jogo passa repetidamente ao longo de sua primeira hora, de diferentes maneiras, para ter certeza de que o jogador entendeu o recado. Uma preocupação honesta, devo dizer, uma vez que a mecânica de desmembramento – inovadora na época e exemplar até hoje – é o cerne de Dead Space.
O jogo inteiro, do design dos inimigos à construção dos cenários, foi pensado para acomodar a mecânica de desmembramento. Isso também se reflete nas “armas” que utilizamos, um arsenal de ferramentas manuais (como serras de corte e cortadoras de plasma) perfeitas para o pesado trabalho de desmembrar criaturas mutantes. Usufruindo de suas habilidades de engenharia, chega a parecer que o protagonista, Isaac Clarke – nomeado em homenagem a dois dos maiores escritores sci-fi da literatura –, sente-se quase confortável em pegar no batente e diligentemente segmentar os monstros que o ameaçam, dando à expressão “Fatiou, passou” um novo sentido ao longo dos 12 capítulos que levamos para concluir a história.
Galões de sangue pixelado são derramados pelo cenário enquanto avançamos. Os primeiros capítulos são os mais difíceis (ao menos do ponto de vista psicológico), pois não sabemos muito bem o que esperar. Que tipo de jogo exatamente é Dead Space?, você pergunta a si mesmo durante as primeiras horas. É do tipo que trabalha com a expectativa, ou mesmo com a opressão fomentada por espaços vazios? Ou é do tipo que tenta provocar tensão o tempo todo, sem oferecer descanso? E muito cedo descobrimos que Dead Space é um pouco de tudo. Estamos o tempo todo sozinhos, mas ao mesmo tempo rodeados de necromorfos. Há sempre uma ameaça ao virar da esquina e algum perigo à espreita, mas ainda assim somos oprimidos pela solidão, pelos espaços desabitados e pelas centenas de corredores estreitos da espaçonave. Dead Space não se interessa por um tipo de horror específico, você finalmente percebe. Ele se interessa por todos.
O jogo se utiliza de cada recurso que tem à disposição para gerar desconforto no jogador. Para além dos jumpscares e da tensão atmosférica, temos aqui um design de som impecável, que brinca com nossas percepções. Constantemente ouvimos sussurros, pessoas gritando, barras de ferro rolando no chão atrás de nós. Nem sempre fica claro se aquilo que estamos ouvindo faz parte da trilha sonora ou do ambiente ao redor – um toque de gênio para manter o coração do jogador aos trancos. É verdade que esse recurso perde um pouco de sua força à medida que nos apercebemos da estrutura cíclica da trilha, que ocasionalmente repete os mesmos ruídos, mas não posso dizer que em algum momento tenha me sentido realmente confortável com essa ambientação sonora.
Também o HUD diegético, feito para tornar o jogo mais imersivo, ajuda a aumentar em grande parte a tensão geral da experiência. Todas as informações necessárias à jogabilidade – como barra de vida, quantidade de munição e objetivos – são exibidas em tempo real dentro da própria realidade do jogo, seja por meio de hologramas ou displays na icônica roupa estilo soldador de Isaac. Isso liberta a tela de ícones e números disputando nossa atenção, permitindo que nos concentremos no ambiente e na atmosfera de terror que ele proporciona. A proposta é incrível por si só, mas funciona ainda melhor em um jogo de horror como Dead Space. Afinal, jamais temos o luxo de nos sentir seguros enquanto vasculhamos o inventário, conferimos o mapa ou melhoramos nossas armas em uma bancada, pois nosso pior pesadelo pode surgir atrás de nós a qualquer momento.
Outra grande sacada é o sistema de spawn do jogo, que se utiliza das saídas de ventilação para lançar os inimigos contra Isaac de acordo com a posição do jogador no cenário. Na prática, isso significa que recuar diante de um inimigo à nossa frente pode muito bem ativar o surgimento de outro inimigo logo atrás de nós, já que as criaturas utilizam o sistema de ventilação para nos flanquear. Também significa que cada campanha tem suas próprias singularidades, uma vez que certos inimigos podem surgir de lugares diferentes em diferentes momentos, mantendo o jogo dinâmico mesmo para quem está jogando pela segunda ou (deus me livre) terceira vez.
A direção de arte do jogo também é soberba, sendo responsável por metade de toda a tensão que sentimos em nossa jornada pela Ishimura. A arquitetura dos cenários, de influência gótica, consegue ser opressiva tanto em espaços estreitos – fomentando a claustrofobia do jogador – quanto em espaços amplos, que nos fazem sentir subitamente expostos e vulneráveis. Mais que isso, o uso de certos motivos na criação das roupas e cenários ajuda a conferir um charme especial a Dead Space, a exemplo das placas e nervuras do uniforme de Isaac – um padrão que se repete tanto na macroestrutura da própria Ishimura (semelhante a uma caixa torácica) quanto no desenho interno da espaçonave.
Se você acompanha o Antropogamer, já deve saber o quanto prezo pela boa integração entre os elementos narrativos e mecânicos em um jogo. Infelizmente, é comum encontrar jogos em que a história contada não dialoga adequadamente com a jogabilidade. É o caso de obras como God of War: Ragnarok, em que o excesso de baús, segredos, colecionáveis e puzzles removem completamente o foco do jogador sobre a narrativa. Algo similar acontece também com a série A Plague Tale, cujo enredo acaba ofuscado por quebra-cabeças que a todo tempo freiam a contação da história para forçar o jogador a empurrar caixas e puxar alavancas.
Esse não é, fico feliz em dizer, o caso de Dead Space. Tudo é plausível no universo do jogo. As armas que utilizamos, por exemplo, são na verdade ferramentas de mineração, pois estamos presos em uma nave mineradora; e por acaso calhamos de ser, mais do que um protagonista faz-tudo, justamente a pessoa certa para resolver os problemas mecânicos da espaçonave. Além disso, o jogo tem uma elegante condução do enredo, que nunca deixa a bola cair. Mesmo pecando pela falta de personalidade do protagonista (algo que viria a ser corrigido na sequência) e por uma ou outra reviravolta mais previsível, a trama é complexa o bastante para manter nosso interesse enquanto avançamos de sala em sala eliminando os necromorfos, ao mesmo tempo que utiliza os conhecimentos de Isaac para justificar todo o vaivém pela Ishimura. Nesse sentido, até mesmo os quebra-cabeças ambientais que precisamos resolver estão de acordo com o contexto da situação em que nos encontramos, seja para religar um maquinário defeituoso ou substituir as peças quebradas de um satélite.
Dead Space também ganha pontos por beber de excelentes filmes de terror como O Enigma do Horizonte, Alien, O Enigma de Outro Mundo e até mesmo O Massacre da Serra Elétrica, além dos franceses Mártires e A Invasora (filmes que recomendo de olhos fechados, desde que você tenha estômago forte). O próprio diretor do jogo, Glen Schofield, admite ter assistido a centenas de filmes de terror e ficção científica para moldar a produção do jogo (sendo Mártires seu favorito). O resultado dessa influência cinematográfica foi uma equilibrada mistura de tudo o que fazem as melhores películas de body horror, slasher, torture porn e assombração. Há toques de fantasmagoria em Dead Space, como alucinações que flertam com o sobrenatural, mas também muita carnificina, ficção científica e horror corporal. Há momentos de tensão crescente e de pavor absoluto, perseguições, suicídios – e até mesmo discussões sobre saúde mental, luto e religião podem ser extraídas da narrativa. A sensação é de que os desenvolvedores pegaram tudo o que havia de mais incômodo nas histórias de que gostavam e deram um jeito de amalgamar esses temas em uma única magnífica obra que, por muito pouco, não posso chamar de prima.
Dead Space chega muito perto de ser perfeito, é verdade. Trata-se de um jogo que tem como objetivo deixar o jogador estressado e inseguro durante toda a sua duração, e faz exatamente o que se propõe. Mas o medo é uma via de duas mãos: quanto mais confrontamos aquilo que nos assusta, menos assustados ficamos a cada confronto. O jogo tenta (e quase sempre consegue) contornar esse desgaste natural da tensão por meio de um rodízio criativo de armadilhas, situações e inimigos para nos manter na ponta dos pés. Porém, logo nos habituamos a esse ritmo frenético, que acaba por nos dessensibilizar após a primeira metade da campanha. Continuamos estressados pelo resto do jogo, é verdade, mas não necessariamente com medo, de modo que a segunda metade acaba sendo muito mais previsível e menos chocante que a primeira, já que ficamos habituados aos sustos e à irrestrita violência daquele universo.
Traçando um paralelo, Dead Space está para os jogos de horror assim como Mad Max: Estrada da Fúria está para os filmes de ação. Ele pisa no acelerador desde o começo e se recusa a diminuir a velocidade. Porém, tratando-se de uma experiência interativa (e muito mais longa que um filme), acaba frequentemente cansando o jogador pela sobrecarga de adrenalina. Penso que o jogo teria se beneficiado de uma quantidade ligeiramente menor de sustos e confrontos, dando espaço para o jogador sofrer com a própria expectativa em vez de ter a certeza de que em breve surgirá outro monstro (ou vários, provavelmente). Por outro lado, também reconheço que Dead Space arriscaria se tornar tedioso sem esse ritmo frenético, já que pouco de narrativamente relevante acontece durante a história.
Outro ponto que me desagrada é o fato de Isaac não dizer uma só palavra durante todo o jogo. Compreendo a intenção dos desenvolvedores: existe certa fragilidade em um personagem que não se expressa para além dos grunhidos que verbaliza ao ser empalado por um necromorfo. Mas sinto que, narrativamente, Dead Space ganharia corpo se Isaac fosse um personagem ao menos um pouco mais relacionável, nem que fosse para dizer “É pra já, senhor” quando lhe pedissem para cumprir outro objetivo suicida. É curioso notar que, segundo o diretor do jogo, uma das regras fundamentais durante a produção foi justamente garantir que Isaac jamais falasse (uma inspiração, pelo que parece, vinda de Half-Life). Acho uma pena. Pessoalmente, me sentiria muito mais incentivado a manter vivo um sujeito que tem suas próprias ideias e opiniões sobre o que está acontecendo ao redor dele em vez de um cara que se limita a gritar quando uma criatura o desmembra até a morte.
Mas, de todos os problemas do jogo, é a câmera que se destaca como a grande vilã. Ela fica tão grudada no personagem que, em certas circunstâncias, quase transforma Dead Space em um jogo de tiro em primeira pessoa. Isaac ocupa pelo menos um quarto da tela quando estamos caminhando pelo cenário, e às vezes metade dela enquanto disparamos contra os inimigos, graças ao zoom automático da mira. Mais uma vez, entendo a ideia por trás dessa proximidade: deixar o jogador desconfortável, dificultando sua movimentação e impedindo que saiba exatamente o que está ao seu redor. No entanto, me parece que abusaram dessa proposta, já que não raramente a sensação de medo ao girar o personagem pelo cenário é sobreposta pelo sentimento de frustração.
À parte essas picuinhas que tenho com Dead Space, no entanto (e que de maneira alguma ofuscam suas qualidades), devo dizer que o jogo se sustenta muito bem até hoje. Jogando no computador, os gráficos são bons o suficiente para não causar estranheza aos olhos, e a jogabilidade em geral (excetuada a movimentação do personagem) responde bem ao que esperamos de um survival horror – pelo menos jogando com o DualSense, já que a sensibilidade do mouse me pareceu desregulada. Tudo somado, a conclusão não pode ser outra que não aquela que ilustra o título deste artigo: Dead Space é uma joia bruta. Ele tem, sim, arestas a serem aparadas – mas nem por isso é menos brilhante.
Ao lado de produções como Outlast e Alien: Isolation, é justo dizer que Dead Space figura entre os maiores e mais bem arquitetados jogos de horror de todos os tempos. Trata-se de uma experiência narrativamente simples, como um trem-fantasma em um parque de diversões: por algumas horas, bastará que você ande para a frente atirando em tudo o que se mover, sendo como que transportado de susto em susto até a conclusão do passeio. Mas serão possivelmente as horas mais intensas que você terá com um jogo eletrônico, mesmo passados 16 anos desde o lançamento desse jogo eletrônico em particular. Isso, é claro, até você experimentar a brutalidade ainda mais visceral do remake, lançado em 2023 – sobre o qual falaremos em nosso próximo artigo.