Análise Demon's Souls

Demon’s Souls e a filosofia da morte

Uma crônica de Boletaria.

Demon’s Souls (2020) é sublime, mas também brutal. Você assume o papel de um guerreiro desconhecido, cujo rosto pode modelar no construtor de personagens, e depois é largado em um mundo que não chega muito bem a compreender. No início, você se sentirá frágil e perdido, quase impotente diante das ameaças que bloqueiam seu caminho. O mais interessante é que, à medida que fizer progresso, continuará se sentindo como se estivesse no começo. Acostume-se com esse frio na barriga, pois ele jamais irá embora. Assim como na vida real, a morte é a única certeza, e quando menos espera você morre pela primeira vez, massacrado por um demônio na escuridão esquecida de uma antiga masmorra.

Demon's Souls Vanguard

O remake de Demon’s Souls é sublime, mas também brutal. Você assume o papel de um guerreiro desconhecido – um mago, no meu caso – largado em um mundo que não chega a compreender muito bem, e cujos habitantes parecem extraídos de um tríptico de Bosch. Sempre que morre, você retorna ao ponto de partida desse mundo nefasto, sendo forçado a refazer seus passos um passo por vez. No início, você se sentirá frágil e indefeso, mas cada morte vai lhe trazer uma valiosa lição. Logo você entende que o aprendizado é sua melhor arma, e a morte sua rígida professora.

O combate é lento e desajeitado, diferente de tudo o que você jogou antes¹. Os espaços são claustrofóbicos. Sua espada ricocheteia no canto das paredes e os confrontos exigem uma aproximação cautelosa, mais baseados em ritmo do que em velocidade. Assim como na vida real, você gasta seu tempo coletando objetos de utilidade duvidosa, recebendo dicas de estranhos e temendo a morte, até que a morte chega soprando fogo dos céus e você morre pela segunda vez.

Em Demon’s Souls, um jogo igualmente sublime e brutal, tudo pode acontecer. No fim de cada corredor (ou pelo menos é essa a sensação), haverá um esqueleto esperando para emboscar você. Ou, quem sabe, dois esqueletos. Ou um espírito vingativo com uma foice. Você aprenderá a caminhar com seu escudo levantado, escondendo-se atrás dele como um cachorro atrás de uma lixeira, tentando mas muitas vezes não conseguindo evitar as flechas ou bolas de fogo ou o que quer que o jogo decida lançar contra você desta vez. 

Com o tempo, você vai sempre esperar pelo pior, e raramente ficará desapontado. A cada morte, você sorrirá timidamente, dizendo a si mesmo que ainda é cedo para desistir. Que vale a pena tentar de novo. Muito da dificuldade aqui, você percebe, vem da concentração necessária para não deixar seu próprio nervosismo levar a melhor sobre você. É tudo uma questão de paciência. Aos poucos, você desbrava o Palácio de Boletaria, um labiríntico forte medieval em ruínas que assoma sobre a cidade imperscrutável abaixo dele. 

Demon's Souls Boletaria

O primeiro nível de Boletaria é uma aula de crueldade, mas você aprende rápido. Quando destrava seu primeiro atalho, tudo começa a parecer um pouco mais fácil. Ou menos impossível. Até que, ao fim das primeiras horas, você alcança seu primeiro chefe: Falange, uma massa amorfa que já foi um dos maiores cavaleiros do reino. O inimigo não passa de uma gelatina de carne, mas nem por isso você se sente menos orgulhoso depois de derrotá-lo, e agora pode dizer a si mesmo que conseguiu vencer pelo menos um dos chefes de Demon’s Souls. De repente, o jogo já não parece tão intransponível assim. Então você deixa o primeiro nível para trás e se aventura pelo Caminho do Senhor – uma gigantesca ponte de pedra guardada por um dragão vermelho. Tentando atravessá-la, você morre pela décima vez, e logo depois pela vigésima, e o jogo volta a parecer intransponível outra vez.

DEMON’S SOULS: DANDO MURRO EM PONTA DE ESPADA

Brutal e sublime, Demon’s Souls é um jogo sobre o fracasso². Não apenas seu – uma alma que perambula pelo inferno de uma realidade lovecraftiana –, mas também do mundo que miseravelmente você falha em superar. A narrativa fragmentária fala sobre um ser antigo despertado pela ganância de um rei ambicioso, e sobre a eventual extinção da humanidade por uma legião de demônios alforriada nesse processo. Boletaria, região onde se passa o jogo, é apenas o primeiro lampejo de um destino que em breve será compartilhado pelo resto do mundo, à medida que uma névoa incolor avança sobre as fronteiras. Alguém sugere que somente você será capaz de acabar com as forças malignas e devolver o Ancião ao seu sono ancestral, mas você sabe que isso não é verdade. Você não é nada, você não é ninguém. Você mal consegue dar cinco passos sem cair em uma armadilha ou ser enganado por um NPC. 

Demon's Souls Patches

Ao seu redor, o mundo de Boletaria se ergue sobre pernas trêmulas, apocalíptico e arruinado. A épica jornada de glória e heroísmo pela qual você esperava é na verdade o epílogo moribundo de uma história que já aconteceu. Você não é mais que o ponto final de uma longa e terrível narrativa, ou mesmo uma vírgula. Quem sabe um ponto de interrogação, vagando a esmo por um mundo indecifrável, perguntando-se como foi que chegou até ali e quanto mais conseguirá avançar antes de finalmente desistir. No fundo, você sabe que não é bom o bastante, e tem certeza de que jamais chegará ao fim da campanha. 

Mesmo assim você insiste, maravilhado pela atmosfera de horror religioso evocada por esse mundo pálido. Na pior das hipóteses, você pensa, poderá escrever um artigo falando sobre sua própria incapacidade de finalizar o jogo, apesar da fascinação magnética que ele exerce sobre você, e quando menos percebe você morre pela trigésima vez.

Demon’s Souls é brutal e sublime, mas não só: ele é também muito triste. Os inimigos humanos que você encontra não têm vontade própria, sendo controlados por uma força que, assim como você, eles não chegam muito bem a compreender, e muitos dos demônios em seu caminho já foram eles próprios tão humanos quanto você. Um sentimento de profanação e declínio embala toda a experiência, ecoando a melancolia e a inevitabilidade da violência presentes em obras como Shadow of the Colossus. 

Ao subjugar o gigantesco Cavaleiro da Torre, paramentado em sua armadura cromada, o sentimento é menos de conquista do que de pesar. Para derrubá-lo, é preciso atacar seus tornozelos, como se você fosse algum tipo de animal traiçoeiro, e então arrebentar sua cabeça enquanto ele estiver caído no chão. Não é uma vitória limpa ou gloriosa, apenas um abate circunstancial. O inimigo se desfaz em uma nuvem de partículas azuis e uma mensagem aparece na tela. O jogo chama você de “algoz de demônios” e lhe pede que traga mais almas – ao que você prontamente obedece.

Para se fortalecer, você consome mais almas – almas de pessoas que se perdem para sempre, apenas para que você possa aumentar suas estatísticas. Você não se importa, evidentemente, e reclama seu direito a qualquer ajuda que possa receber contra os horrores de Boletaria, divididos em cinco mundos que são um mais desolador que o outro.

Aos poucos, você se torna tão cauteloso que raramente é pego de surpresa. Atalhos se abrem a todo momento. Você está progredindo. Quando morre, perde as almas que acumulou no bolso, mas nunca seu conhecimento sobre aquele nível – sobre o posicionamento de inimigos e armadilhas, sobre quem evitar e com quem arranjar briga. Você perde tempo e recursos, mas nunca sua memória. A certa altura, o jogo começa a se parecer muito com o livro japonês All You Need is Kill, no qual um soldado é obrigado a morrer e ressuscitar indefinidamente para lutar contra o mesmo inimigo, superando-se a cada nova tentativa. Você continua morrendo, sim, mas adota a morte como filosofia; a derrota como tutora. Sempre que volta, você volta mais forte.

Mergulhando nos túneis escuros de Stonefang – a indústria mineradora de Boletaria –, você se descobre matando chefes icônicos dos quais sempre ouviu falar, mas nunca pensou que enfrentaria. Em uma sala enterrada nas profundezas do subsolo, você encontra o Flamelurker: um demônio em chamas que a Blue Point admitiu ser um ponto alto deste remake, e que costuma figurar na lista de inimigos mais casca-grossa do jogo. Você respira fundo e se prepara psicologicamente para fazer o que faz de melhor: fracassar e morrer.

Mas, então, o inesperado acontece. Parece que sua íntima relação com seu próprio fracasso está rendendo frutos e, em uma reviravolta do destino, você vence o Flamelurker logo na primeira tentativa – uma conquista que captura em vídeo para a posteridade.

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Sentindo-se confiante com a inesperada facilidade dessa vitória, você começa a pensar que talvez seja capaz de chegar ao final do jogo. Quem sabe, apenas quem sabe, a vitória seja uma possibilidade. Triunfante, você segue em frente com um sorriso no rosto, logo antes de morrer mais uma vez.

VOCÊ MORREU

Brutal e sublime, assim é Demon’s Souls. Você assume o papel de um guerreiro desconhecido, mas resiliente, que deve lutar para conquistar cada centímetro deste nefasto território, um passo por vez. Como em nenhum outro jogo, aqui faz sentido controlar um avatar mudo e desconhecido, despido de qualquer caracterização narrativa. É justamente isso o que permitirá a você se colocar no papel desse protagonista genérico. Quando o personagem morrer, vai parecer que foi você quem bateu as grevas. E quando o protagonista perseverar e vencer, será você quem terá vencido, muito mais do que o personagem na tela.

Ao seu redor, fantasmas incorpóreos transitam pelo cenário. São guerreiros desconhecidos e resilientes como você, avatares de jogadores lutando agora mesmo por sua própria sobrevivência. Do outro lado do mundo, alguém está segurando um joystick com uma determinação semelhante à sua. Por um instante você se lembra de que não está sozinho, e se conforta ao imaginar que seu próprio avatar é um fantasma no jogo de outras pessoas. Espalhadas no chão, mensagens deixadas por seus colegas alertam sobre os perigos à frente, mas é preciso cautela: nem todos os jogadores são honestos como você. “É hora de rolar”, diz um recado à beira de um precipício – mas talvez não seja.

Pelo caminho, há poças de sangue – muitas delas. Em um excepcional exemplo de como o componente on-line pode ser atrelado à narrativa single-player, essas manchas vermelhas revelam os últimos segundos de vida de outros jogadores, logo antes de serem brutalmente assassinados onde você está agora. O fracasso deles, você reflete, pode tanto evitar quanto prenunciar sua própria morte. A tensão é crescente. Você sente seu coração palpitar, seus dedos suados escorregam pelo controle. A morte espreita em cada canto. Carregado com dezenas de milhares de almas, você diz a si mesmo que não pode morrer. Não aqui. Não agora. Mas, inevitavelmente, você morre outra vez – e agora é uma mancha vermelha servindo de alerta no jogo de outra pessoa.

Em Demon’s Souls, sua morte é sempre brutal, mas seu retorno é sublime. Em poucos segundos (graças à velocidade do SSD), você estará novamente enfrentando seus piores pesadelos, preso em um ciclo de eterno retorno que lembra mais o inferno de Dante do que as reflexões de Nietzsche. Ao retornar dos mortos, você tem uma chance – e apenas uma – de recuperar as almas que perdeu ao morrer pela última vez. Sem outra alternativa, você tenta. Mas, antes que possa alcançá-las, comete o erro de subestimar o inimigo e morre nas mãos de um demônio qualquer. Agora, todas aquelas milhares de doces almas estão perdidas para sempre.

Não é fácil sublimar a brutalidade de Demon’s Souls – uma cólera profana que governa toda a obra, desde sua jogabilidade até a direção artística. Mesmo o silêncio da Torre de Latria – uma construção espiralada que se estica como um braço ferido em direção ao negrume do céu – é violento e opressor. Na Prisão da Esperança, primeiro nível da torre, uma coleção de prisioneiros se enfileira atrás das grades, todos compartilhando da mesma tola esperança de salvação.

Quando você os liberta de suas celas, eles se aglomeram ao seu redor com os braços para o alto, como se você fosse algum tipo de salvador – o que sabemos não ser verdade. Imundos e balbuciantes, eles passam então a segui-lo pelos estreitos corredores da prisão, acumulando-se como baratas à sua volta, até que você se veja obrigado a matá-los apenas para desobstruir o caminho. Com um ruído molhado, a carne deles se desfaz contra o fio de sua espada. O som é aterrador.

Demon's Souls Latria

Aliás, todo som aqui é desconfortável e aterrador. Não existe música na maior parte do tempo, obrigando você a conviver com a sonoplastia diegética do jogo. Os gritos de um homem desesperado ecoam pela prisão de Latria, fazendo com que você deseje e ao mesmo tempo não deseje encontrá-lo, temendo aquilo que poderá descobrir. 

Através das paredes, o tilintar de sinos anuncia a chegada de inimigos terríveis. O vento sopra em seu ouvido, e por baixo dele você ouve vozes. Grunhidos. Pés se arrastando por trás das portas, gritos abafados por muros de pedra. Em algum lugar no escuro, é possível decifrar o bocejo gutural de um demônio que aguarda para se alimentar de você. Mas, por baixo de tudo isso, existe apenas um esmagador silêncio, do tipo que permite ouvir sua própria respiração enquanto você avança, pé ante pé, pelas catacumbas de um mundo entregue à loucura.

Demon's Souls Latria

A única forma de ouvir música aqui é confrontando os chefes do jogo. Nessas batalhas, os alto-falantes explodem em trilhas sonoras orquestradas que oferecem a você um impulso sensorial extra para vencer o inimigo. Você levará apenas 40 segundos para derrotar o temível Maneater, mas a música desse encontro permanecerá com você por muito mais tempo, soando no fundo de sua cabeça até lentamente se dissolver junto à adrenalina do combate. E quando for inevitavelmente devolvido ao silêncio opressor de uma cripta subterrânea, você começará a se perguntar quando é que vai enfrentar sua próxima música, e quantas vezes precisará ouvi-la antes de conseguir vencê-la.

Morte após morte, vitória após vitória, você faz seu nome em Boletaria. Quando não está jogando, você está pensando em Demon’s Souls – um jogo que em muitos aspectos é mais um survival horror do que um RPG de ação. Para alguém que nunca se afeiçoou ao gênero soulslike, você parece comprometido. Terminar a campanha se torna uma questão de honra e, mais que isso, de regozijo. Com dois mundos vencidos, você se dirige para o terceiro, e depois para o quarto, absorvendo cada detalhe de seu fabuloso design de níveis, da construção dos cenários e da caracterização de seus estranhos personagens. Mesmo quando fracassa, você se diverte – como há muito tempo não se divertia com um videogame , e mal pode conter a expectativa de ser novamente materializado na tela para tentar (e fracassar) de novo ao falhar pela centésima vez.

UMBASA!

Brutal e sublime, este é Demon’s Souls – um jogo no qual você assume o papel de um guerreiro desconhecido, mas poderoso, que não se deixa abalar por suas consecutivas derrotas. No início, você se sentirá frágil e perdido, quase impotente diante das ameaças que bloqueiam seu caminho. Mas, à medida que fizer progresso, a vitória começará a parecer menos inacessível, e quem sabe até mesmo ao alcance de suas mãos.

A atmosfera de tristeza que permeia o jogo, entretanto, ficará gradativamente pior enquanto você massacra chefe após chefe, inimigo depois de inimigo, lutando por um mundo que jamais reconhecerá seus esforços. Colabora para essa sensação de tristeza a empatia que você sente pelos vilões do jogo. Olhando para trás, você se dá conta de que Demon’s Souls está bastante preocupado em desconstruir seus chefes, em torná-los mais do que meros gimmicks ou testes de paciência, fazendo deles objetos de reflexão. 

O Deus Dragão que você matou, por exemplo, parecia-se muito com um demônio feroz, mas também com um animal acorrentado. Já o patético Juiz engordou tanto ao se alimentar da alma dos mortos que afundou em um buraco no chão, sua velha espada cravada na própria barriga – um inimigo digno de pena. O Velho Herói, por sua vez, não passa de um cego que você pode facilmente ludibriar e atacar por trás, como faria um verdadeiro covarde.

Nenhum outro chefe, porém, é tão ambíguo quanto a Senhora Astraea – uma perfeita deturpação da iconografia religiosa, representada por uma garota de branco em um lago de sangue e carne podre. Astraea não passa de uma garota, uma santa glorificada pelos habitantes daquele pântano imundo, mas o jogo diz a você que ela precisa morrer e, obediente, você se encaminha para matá-la.

Aproximar-se de Astraea não levará a uma cena de transformação monstruosa ou ao início de uma violenta batalha. Em vez disso, haverá apenas você, sua espada e uma jovem frágil, cujo corpo você abandonará em um lamaçal infeccioso depois de executá-la. Em nenhum momento ela tentará se defender. Você diz a si mesmo que está fazendo isso pelo bem maior, mas a essa altura já não consegue ter certeza, e então prossegue em sua marcha de dor e sofrimento, pois prosseguir é tudo o que pode fazer. 

Pouco tempo depois, seu caminho leva você – um guerreiro brutal e desconhecido, mas um mago sublime – ao último grande desafio do jogo: o quarto nível do Palácio de Boletaria. Foi um longo caminho até aqui, você reconhece, e o que parecia impossível 30 horas atrás agora é quase realidade. Você invade a Torre do Rei, dribla um dragão azul cuspidor de fogo e se coloca diante do mais resistente chefe do jogo, que prontamente o encaminha para os domínios da morte. Não satisfeito, esse inimigo também rouba um ponto de habilidade do seu personagem – um ponto de habilidade que lhe custou uma pequena fortuna em almas para obter. Dessa vez, ao retornar para uma nova tentativa, você retorna mais fraco, subvertendo a lógica de todo o resto do jogo. É um mecanismo de abalo psicológico, feito para desestabilizar o jogador – e o pior é que funciona.

Determinado, você invade novamente a Torre do Rei, dribla novamente o dragão cuspidor de fogo e novamente se prepara para a batalha. Você inspira, expira e conta até dez, dizendo a si mesmo que está no controle. Mais uma vez, entretanto, você é derrotado. Mais uma vez, um ponto de habilidade é subtraído de suas estatísticas, outras dezenas de milhares de almas perdidas para sempre. Você continua tentando, a despeito de todos os inimigos e dragões cuspidores de fogo pelo caminho, mas tudo o que consegue é continuar morrendo. A cada morte, suas magias se tornam menos eficazes; seus ataques, menos poderosos. Quanto mais você tenta, mais debilitado fica, e de repente começa a pensar que talvez tenha comemorado cedo demais. 

Demon's Souls Dragão Azul

Mas o nome do jogo é perseverança. Então você invade a Torre do Rei e dribla o dragão cuspidor de fogo mais uma vez. Infelizmente, você morre mais uma vez. Mas o nome do jogo é perseverança. Então você invade a Torre do Rei e dribla o dragão cuspidor de fogo mais uma vez, e outra, e mais uma, indignado com a ideia de ter chegado tão longe apenas para desistir agora. Até que, por volta da sexta ou sétima tentativa, sem que você saiba exatamente como, o inimigo cai a seus pés, transformado em uma gloriosa nuvem de partículas azuis que o vento faz o favor de soprar para longe. Você comemora, é claro, com um suspiro aliviado e alguns palavrões – mas uma voz zombeteira anuncia que seu trabalho não está terminado. Então você sacode a poeira e segue em frente, porque seguir em frente, você sabe, é tudo o que pode fazer.

Por fim, quando menos percebe, você – um guerreiro desconhecido, cansado e abatido, mas orgulhoso de si mesmo – está diante do último chefe do jogo: o antagônico Rei Allant, que por uma irrefreável cobiça entregou seu reino às governanças do inferno. Você espera por uma última grande batalha, preparando seu ego para ser destruído. Mas, em vez disso, é recebido por uma massa disforme que em nada lembra a figura de um poderoso rei. 

Mais uma vez, Demon’s Souls faz questão de contrariar as expectativas: o que sobrou do monarca é apenas um retalho esponjoso do homem que já foi um dia. O rei lhe diz que seu desejo é acabar com a miséria e o sofrimento humano, e que para isso é necessário acabar com a própria humanidade – uma ideia que não soa de todo incoerente. Você quase se sente tentado a concordar com ele, mas então se lembra de tudo o que passou para chegar até aqui. Você o ataca, esperando algum tipo de revide ardiloso, mas nenhuma luta realmente se segue. O rei se move com dificuldade, como se estivesse doente, e matá-lo será praticamente um ato de misericórdia. Assim, misericordioso, você põe fim ao sofrimento de seu inimigo – e ao seu próprio, por extensão, ao finalizar um jogo que jamais acreditou ser capaz de concluir.

AQUI COMEÇA O VERDADEIRO DEMON’S SOULS

Não é um final feliz, no entanto. As almas que se perderam nessa guerra jamais serão recuperadas. Você não poderá voltar para casa. Em vez disso, deverá permanecer vigilante no Nexus, um mundo entre mundos, aguardando o momento em que a humanidade fatalmente despertará o Ancião mais uma vez. Você não foi o primeiro a cruzar esse caminho, nem haverá de ser o último. Como uma roda girando na eternidade, o ciclo se reinicia. 

Antes que possa reivindicar uma conclusão mais satisfatória, você é novamente devolvido ao início do jogo. Agora, enfim, você assume o papel de um guerreiro conhecido – aquele que, com lágrimas e sangue, você erigiu com seu próprio esforço. Os pontos de habilidade conquistados permanecem com você, assim como suas armas e feitiços, mas o mundo (esse mesmo que você tanto lutou para libertar) retornou ao seu estado inicial. Ressuscitados, os inimigos estão agora ainda mais fortes, incitando você a matá-los pela segunda vez, e quem sabe até mesmo pela terceira – se estiver se sentindo com sorte. 

Você fica tentado a aceitar o desafio, a ingressar de cabeça em uma nova rodada de sangrentas batalhas. Como um verdadeiro algoz de demônios, sua sede por almas é insaciável. Você empunha sua espada e contempla a vastidão do Nexus, aprisionado em um looping do qual não deseja escapar. Demon’s Souls, você finalmente percebe, é tudo aquilo que sempre disseram: disruptivo e seminal, ainda que críptico e exigente – o tipo de obra que deixará uma marca indelével em sua memória. É um jogo sombrio e difícil, sim, mas igualmente divertido e engenhoso. Mais que um teste de habilidade, Demon’s Souls é uma experiência, do tipo que todos deveriam ter ao menos uma vez na vida – e várias na morte. Mais que um jogo, Demon’s Souls é um evento. Um marco na história dos videogames e, agora, também em sua própria história.

Demon’s Souls é brutal, você diz a si mesmo. Demon’s Souls é sublime.

E então retorna para Boletaria.

 

 

 

¹ Até duas semanas atrás, minha única incursão no gênero souls (fossem jogos da FromSoftware ou de outras desenvolvedoras) havia sido em Bloodborne, por volta de 2018. Apesar de admirar a direção artística e a temática do jogo, fui afastado por sua dificuldade atroz e pela ausência de uma narrativa clara. Eu não conseguia entender o que o jogo esperava de mim – podia jogar horas a fio sem fazer qualquer progresso visível. Logo, o desafio se transformou em tédio. 

Para mim, veja bem, o problema era menos a dificuldade em si do que a repetição. Eu me sentia honestamente deprimido quando precisava refazer pela décima vez o mesmo trajeto apenas para ser novamente derrotado por minha própria inépcia. Logo ficou claro que eu não era bom naquilo, nem fazia questão de ser. Com um suspiro resignado, abandonei Bloodborne após o segundo chefe e nunca mais me arrisquei em jogos do gênero.

Essa experiência frustrada não me impediu, entretanto, de nutrir admiração e curiosidade pelos jogos da FromSoftware. Sempre tive vontade de embarcar neles, mas parecia que (ao menos para mim) esse barco já havia partido. Até que, dias atrás, encontrei o remake de Demon’s Souls dando bobeira no catálogo da PS Plus, e tive a impressão de ouvir um chamado – era chegada a hora. Seria uma espécie de justiça poética, pensei, dar uma segunda chance ao gênero começando pelo jogo que primeiro o definiu, o pai dos soulsborneE foi exatamente o que fiz, com o coração aberto a todas as flechas, lanças e espadas que ele tentaria cravar em mim.

² O conceito de derrota é inerente a Demon’s Souls. Inicialmente criado para ser um concorrente direto de The Elder Scrolls, o jogo foi considerado um fracasso ainda nos estágios iniciais de sua produção. Quando Hidetaka Miyazaki – que havia dirigido apenas dois jogos antes – assumiu o projeto, as expectativas eram tão baixas que o estúdio lhe deu ampla liberdade para fazer com o jogo o que bem entendesse.

Demon’s Souls não estava indo bem”, contou Miyazaki em uma entrevista para o The Guardian, em 2015. “O projeto tinha problemas, e a equipe não conseguiu criar um protótipo atraente. Mas, quando ouvi que era um RPG de ação e fantasia, fiquei animado. Imaginei que, se eu pudesse encontrar uma maneira de assumir o controle do jogo, eu poderia transformá-lo em qualquer coisa que eu quisesse. O melhor de tudo é que, se minhas ideias falhassem, ninguém se importaria – já era um fracasso”.

A equipe de Miyazaki levou o projeto para a mesa de cirurgia e retornou de lá com uma besta reformulada. Em vez da visão em primeira pessoa, agora eles tinham uma câmera em terceira. No lugar de uma narrativa clássica, um contexto. O jogo ainda era um RPG de ação e fantasia sombria, mas sua alta dificuldade o separava da tradição de jogos (especialmente ocidentais) que há anos vinham priorizando a acessibilidade e clareza de informações. Se jogos como Prototype, Uncharted 2: Among Thieves e Resident Evil 5 (lançados no mesmo ano em que Demon’s Souls) buscavam ao máximo se aproximar de uma experiência cinematográfica e cheia de ação, o projeto de Miyazaki era compassado, cerebral e estratégico – uma criatura singular, mas que viria a se tornar o primeiro exemplar de toda uma espécie.

Enquanto a indústria se movia em uma direção, a desenvolvedora FromSoftware permitiu à equipe de Miyazaki se lançar em outra. O jogo saiu em 2009, com baixas expectativas de venda, e conseguiu vender ainda menos do que se esperava. O fracasso parecia agora uma certeza, e não uma promessa. Parte do problema era que Demon’s Souls não correspondia ao RPG-modelo pelo qual os jogadores – e até mesmo os críticos – esperavam, exigindo tempo para ser devidamente compreendido e apreciado.

Eventualmente, sabemos, o jogo cruzou o Pacífico e ganhou adoradores em todo o mundo, o que incentivou sua publicação no Ocidente. A dificuldade não era mais um empecilho, e sim um distintivo a ser exibido com orgulho. As pessoas finalmente entenderam a proposta de Miyazaki e seus colegas, e então a abraçaram e nunca mais soltaram. Hoje, Miyazaki é presidente da desenvolvedora onde começou a trabalhar, em 2004, como programador. Mas sua história de sucesso não se reflete na mecânica de seus jogos, todos eles fundamentalmente construídos sobre o pilar da derrota, tendo o fracasso como mecânica e a morte como aprendizado.

4 comentários em “Demon’s Souls e a filosofia da morte”

  1. Jorge Jacoh Ferreira

    Parabéns pela leitura dessa bela obra que é o Demon Souls. Existe um forte componente psicanalítico pulsional na forma que os jogos da From Software são desenvolvidos. Estou convencido de que esses jogos apelam para um nosso interior masoquista que está lá dentro do nosso inconsciente.
    De certa, forma existe uma prazer ininarrável da superação das dificuldades da mesma forma que uma fruição perversa das derrotas. E sempre de novos (e tão familiares) recomeços.

    1. Obrigado pela leitura, meu amigo! Concordo com você, a mistura entre prazer e dor coexiste em harmonia (se é que podemos chamar assim) nas obras da From Software. Espero resenhar mais jogos da desenvolvedora em breve. Abraço!

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