Quando finalmente consigo entrar no quarto, percebo que cometi um erro. Os cadeados do lado de fora e as correntes penduradas na porta não estavam lá para impedir minha entrada, mas para aprisionar alguma coisa aqui dentro. Sou atropelado por essa constatação assim que vejo o corpo disforme acorrentado no centro do quarto. Um par de olhos sanguíneos se levanta contra mim e uma voz desumana celebra minha chegada: “Bem-vindo ao inferno”.
As paredes descascam como se fossem um organismo reptiliano trocando de pele. A luz cinzenta do dia lá fora desaparece, filtrada pela sujeira das janelas, e o quarto é gradualmente mergulhado em uma escuridão profunda que se fecha cada vez mais ao redor da minha lanterna.
O choro de uma sirene rasga a noite ao meio, fazendo meus tímpanos vibrarem emoldurados pelo headphone. Estou girando em meus calcanhares de um lado a outro, machado em mãos, a fim de me proteger de um ataque que nunca chega. Demora talvez um minuto inteiro de ansiedade e calcanhares girando para que a sirene se cale e morra outra vez, envolvendo o apartamento em um zumbido surdo. Um silêncio de duas toneladas despenca sobre mim. Estou sozinho no quarto, ou pelo menos acho que estou. Meus objetivos são atualizados no canto da tela.
Tenho que achar a saída.
A silhueta de manequins abandonados na contraluz assombra os corredores enquanto avanço pela escuridão que dominou o apartamento. Uma pistola enferrujada e sete balas me esperam na segunda gaveta de uma cômoda velha, prenunciando as manifestações de violência que se aproximam – e as manifestações de violência se aproximam rápido.
Saindo pelas portas de quartos e banheiros, como se regurgitadas pelo próprio apartamento, criaturas hediondas emergem das cinzas para me subjugar. A munição limitada, somada à minha pontaria errática, logo me põe para correr em um sprint desesperado até a porta da frente. Mas, quando finalmente consigo sair do apartamento, percebo que cometi um erro.
Não há como fugir do inferno.
APARTAMENT 1406: UM CONTO DE HORROR
Apartament 1406 foi lançado sem muito alarde em agosto de 2023, mas não demorou para cair nas graças dos streamers e do público, angariando análises positivas nas principais plataformas de jogos para PC. Desenvolvido por Airem, estúdio polonês de jogos independentes, Apartament 1406 condensa anos de horror audiovisual em um jogo que dialoga com os clássicos sem ignorar suas influências modernas – um passeio cruel pelas entranhas de um prédio tomado por fantasmas, demônios e aberrações que eu nem tentaria descrever.
Para entender um pouco mais sobre Apartament 1406 e sobre o desenvolvimento de jogos na Polônia, batemos um papo com a mente criativa (e misteriosa) responsável pelo estúdio Airem¹. Só faltou uma cervejinha.
Airem é um estúdio de games de uma única pessoa. Tentei descobrir um pouco mais sobre você on-line, mas não encontrei informações pessoais. Pode me contar quem é a pessoa por trás de Airem? Ou o anonimato é proposital?
Devido ao projeto Airhack, não posso revelar muitas informações pessoais. Além disso, meu foco principal é a criação de jogos, e não quero minha história pessoal em evidência. Desejo que meus jogos chamem atenção dos jogadores, não minha identidade.
Apartament 1406 é seu jogo mais recente, mas existem dezenas de outros jogos seus na Steam. Entre eles há jogos de corrida, simuladores de loja e puzzles. Você é um artista muito prolífero, e os temas dos jogos são variados. Você pensa em se dedicar mais a um único gênero futuramente? Penso que você tem grande talento para o survival horror.
Certamente, no futuro, farei mais jogos de terror, mas não quero me limitar a apenas um gênero. Gosto de criar vários tipos de jogos, porque cada gênero me proporciona uma oportunidade de aprender e ganhar experiência. Criar diferentes jogos me permite experimentar diferentes ferramentas e motores, enriquecendo minhas capacidades criativas. Às vezes, eu construo jogos do zero, como Play with Me, que foi criado usando JavaScript + HTML + CSS. Isso me ajuda a entender melhor vários aspectos do design de jogos.
Apartament 1406 é uma bela carta de amor aos survival horror dos anos 90, mas também flerta com jogos atuais e outras obras. Notei diversas referências ao longo do game: o nome do protagonista é Ethan, como em Resident Evil 7; alguns inimigos, o cenário e a história prestam homenagens a Silent Hill; e o próprio número do apartamento me fez lembrar do filme 1408, baseado no conto de Stephen King. Vejo até mesmo um pouco dos quadrinhos Hellblazer em certos elementos narrativos. Que outras referências deixei passar?
Você certamente não mencionou o título mais significativo, que é Jacob’s Ladder. Esse filme contém muitos elementos inspiradores que também apareceram em jogos como Silent Hill (como ferrugem, sangue, a história, personagem, médico/enfermeira sem rosto etc.). Outras inspirações incluem jogos como Nightmare Creatures, Splatterhouse 1 e 2 (NES), Alone in the Dark 1, 2 e 3, Parasite Eve, Clock Tower, Alundra, Mizzurna Falls, Koudelka e Evil Dead Rise.
Pode comentar um pouco sobre suas influências artísticas? Filmes, livros, games ou desenvolvedores que inspiraram você a trabalhar com jogos?
Não me limito a uma fonte de inspiração. Tiro ideias de vários campos, incluindo filmes, livros e jogos. Minhas inspirações vão de Teletubbies e O Senhor dos Anéis a Silent Hill. Diversas fontes me ajudam a criar projetos únicos e intrigantes.
Eu fiquei realmente impressionado com os gráficos de Apartament 1406. Eles são muito bons! Os efeitos de luz e sombra, em especial, ficaram incríveis. Ainda assim, o jogo ocupa somente 2 GB de espaço ao ser instalado. Que mágica é essa?
Gosto de otimizar jogos e reduzir o tamanho dos arquivos. Apartament 1406 exigiria cerca de 10 GB de espaço de armazenamento, mas consegui reduzi-lo para apenas 2 GB. A maior parte desse espaço é destinada a arquivos de áudio (música, efeitos sonoros, diálogos), pois quero manter um áudio de alta qualidade no jogo.
O jogo acaba em uma espécie de cliffhanger, no ponto alto da história. Honestamente, eu adoraria ter jogado mais 30 minutos antes de os créditos rolarem, mas aprovo a ideia de entregar uma história concisa. O final em aberto me deixou curioso: você pensa em produzir mais conteúdo para Apartament 1406? Quem sabe uma DLC ou uma continuação?
Sim. Em um dos recados de atualização da Steam, anunciei o desenvolvimento de Apartament 1406 – Part Two. Na sequência, os jogadores não assumirão apenas o papel de Ethan, mas também de Gabriel Blackwood, e pode até haver outro personagem…
Fiquei impressionado com a localização do jogo. Ele foi traduzido para mais de 90 idiomas! Isso é raro até mesmo para grandes empresas de videogames, que muitas vezes ainda ignoram esse importante aspecto de acessibilidade. Pode me contar um pouco mais sobre o processo de tradução? Você contratou alguém para traduzir ou fez tudo sozinho?
A tradução de jogos é um processo complexo, mas entendo como é importante que os jogadores possam jogar em seu idioma nativo. Costumo procurar a ajuda de amigos ou usar plataformas como fiverr.com, onde se encontram tradutores profissionais. Esse pode ser um processo demorado, mas vale a pena tornar os jogos acessíveis aos jogadores em seus próprios idiomas.
O cenário parece muito promissor para a indústria de jogos na Polônia. Nos últimos anos, diversos games poloneses chamaram atenção, como The Vanishing of Ethan Carter, The Medium, Darkwood, This War of Mine, Superhot, Observer e Dying Light. Como você enxerga esse mercado sob a perspectiva de um desenvolvedor independente? Existe algum incentivo do governo ou bolsas culturais para estúdios independentes na Polônia?
O mercado de jogos na Polônia está crescendo de forma dinâmica e é muito promissor. Estou otimista quanto ao futuro da indústria de jogos aqui. Existem várias fontes de apoio para estúdios independentes, incluindo subsídios governamentais, fundos da União Europeia e investidores privados. Isso ajuda desenvolvedores independentes no desenvolvimento de seus projetos. No entanto, os criadores independentes frequentemente enfrentam desafios relacionados ao marketing e à promoção de seus jogos, o que exige recursos adicionais. Também vale a pena mencionar que a concorrência no mercado de jogos é muito alta, por isso o sucesso requer não apenas talento, mas também um planejamento cuidadoso e esforços de marketing.
Você deve ser bastante ocupado. Ainda consegue arranjar tempo para jogar? Quais foram os últimos jogos que prenderam você? Gostaria de ver algum deles sendo analisado por nós?
Você tem razão; minhas atividades como desenvolvedor de jogos podem ser intensas, mas tentarei encontrar tempo para jogar². Quanto às análises do Antropogamer: acredito que uma resenha de Silent Hill 2 Remake com certeza interessaria muitos jogadores.
Por último, mas não menos importante: você gosta de pierogi? Eu adoro. Conhece alguma comida brasileira?
Claro, gosto de pierogi. Eles são deliciosos. Quanto à comida brasileira, conheço algumas iguarias, como coxinha, acarajé, pão de queijo e brigadeiro.
Agradeço por nos enviar o código de review para o jogo. É difícil conseguir códigos, pois ainda somos um site pequeno. Na verdade, foi o primeiro código de review que recebemos no Antropogamer. Um brinde a isso! Obrigado também pela entrevista. Gostaria de acrescentar algo? Sinta-se livre, o palco é seu.
De nada, e estou feliz por poder fornecer um código de review. Receber apoio como desenvolvedor independente é importante, independentemente do tamanho da plataforma. Agradeço seu interesse em meu trabalho e pela entrevista. Gostaria de agradecer a todos os gamers do Brasil e ao Antropogamer pelo apoio e interesse em minhas criações. Espero entregar jogos ainda mais emocionantes no futuro.
¹ A conversa, traduzida do inglês, foi reproduzida na íntegra.
² Os links ao longo da entrevista foram encaminhados pelo entrevistado.