Nunca joguei um jogo que me fizesse chorar, assim como nunca chorei assistindo a um filme ou escutando uma música. Não significa que eu não tenha entornado minha cota de lágrimas nesta vida, é claro. Apenas nunca aconteceu de elas serem vertidas em função de uma obra artística – pelo menos até agora.
FLORENCE: O PRIMEIRO AMOR DE UMA MULHER
Originalmente lançado como um jogo mobile, mas hoje disponível também para PC e Nintendo Switch, Florence é um breve e agradável conto sobre o primeiro amor da personagem-título, uma jovem de seus vinte e poucos anos que, após um oportuno acidente, apaixona-se por um violoncelista. Inspirado pela estética das graphic novels e webcomics, o jogo descreve o ciclo de vida de um relacionamento amoroso, com seus altos e baixos, abordando as significativas mudanças que ele provoca na vida e no comportamento das pessoas envolvidas.
A narrativa – indicada ao Bafta Game Awards de 2019 – se estrutura ao longo de 20 capítulos, dentro dos quais se organizam telas com as quais podemos interagir para avançar a história. Todas as interações são orgânicas e muito simples, sem jamais tirar o foco do enredo. Com seu jogo de estreia, a grande sacada da desenvolvedora Mountains foi transmitir, por meio de mecânicas muito básicas, mas eficientes, as sensações (boas e ruins) experimentadas pelos próprios personagens.
Escovar os dentes, por exemplo, é uma tarefa monótona (basta arrastar a escova de um lado a outro com o mouse), mas que reflete o estado de espírito da protagonista no início da história. Entediada, como se seguindo no piloto automático, Florence leva uma vida pacata – talvez até pacata demais. No escritório, seu trabalho é mecânico, assim como a tarefa que nos é dada naquele momento: juntar números iguais em uma planilha de computador, como em um desinteressante jogo da memória, realizando uma tarefa esvaziada de significado – tanto para o jogador quanto para a personagem. Por outro lado, mais à frente na narrativa, já no auge do namoro, as mecânicas se ajustam para mostrar as positivas alterações na rotina de Florence. O trabalho, por exemplo, começa a “se fazer sozinho”, sem exigir nenhuma interação do jogador, como se a garota estivesse tão feliz que nem mesmo o tédio profissional fosse capaz de abalar sua disposição – e até mesmo tarefas banais, como escovar os dentes ou tomar café da manhã, ganham cor e parecem muito mais afetivas do que antes.
Em seu primeiro encontro, os personagens estão ainda tentando entender um ao outro. Mesmo sem qualquer linha de diálogo, sabemos como eles se sentem: desajeitados e apreensivos, mas querendo se entregar um ao outro. Mecanicamente, essa ambiguidade emocional é demonstrada por balões de fala que nós, jogadores, precisamos montar para garantir a fluidez da conversa. Os puzzles são mais complicados no primeiro encontro – com muitas peças em formatos complexos, que não sabemos muito bem como encaixar –, mas vão ficando cada vez mais simples à medida que os personagens se aproximam. A certa altura, pouco antes do primeiro beijo, o quebra-cabeça é reduzido a somente duas peças, que se atraem mutuamente e sem esforço para se combinar em um mesmo contorno.
Também as cores ao longo do jogo servem bem ao propósito de transmitir, visualmente, a paixão que aflora no coração de Florence. De início, tudo é cinzento e sem graça: as vestimentas da personagem, os móveis de sua casa, a toalha de banho, o mundo inteiro. É somente quando ela conhece Krish, o violoncelista, que sua vida ganha cor. Tons de amarelo, vermelho e azul passam a fluir e preencher os espaços em branco, e o mundo vai se tornando mais e mais colorido à medida que os namorados se apaixonam um pelo outro.
E quando o casal inevitavelmente briga entre si, não só as cores se apagam e voltam a desaparecer, como o próprio traço do desenho que compõe os personagens se torna mais delgado e menos tangível, sugerindo que o relacionamento voltou à prancheta enquanto os amantes tentam, cada um a sua maneira, esboçar uma resolução saudável para seus problemas.
Com um visual caprichado e uma narrativa singela, Florence é muito mais do que parece à primeira vista, esbanjando talento do começo ao fim. Mas há duas cenas, em particular, que certamente levarei na memória. A primeira delas é quando Krish e Florence vão morar juntos, e precisamos decidir o que guardar conosco e o que jogar fora, pois não há espaço para acomodar os pertences de ambos. Qualquer pessoa que já morou com um companheiro ou companheira (especialmente amoroso) sabe o quanto é delicada essa negociação do espaço, o ajuste de regras e combinados que devem ser feitos para alinhar as expectativas das duas partes – um sentimento que está bem representado no jogo.
Já a outra cena, muito mais sombria, fala do estranho sentimento de se sentir sozinho ao deitar na cama ao lado de alguém. Florence é uma obra bastante criativa na forma como se apropria da narrativa para reforçá-la mecanicamente, e há dezenas de exemplos dessa criatividade sustentando o jogo. Mas nenhuma mecânica mexeu tanto comigo quanto a usada nessa vinheta. Os namorados estão deitados um ao lado do outro na cama. A imagem, contudo, está fragmentada em pedaços sobrepostos e confusos. Nessa tela, o objetivo do jogador é juntar os pedaços para organizar a imagem. Monta-se um lado da cama, com Florence; monta-se o outro, com Krish. E só então percebemos que, independentemente de nossa boa vontade, não há como conectar essas duas grandes peças outra vez, pois não existe encaixe possível.
Há diversas outras cenas como essa – reflexivas e melancólicas – espalhadas pelo jogo, mas também outras tantas de beleza e ternura. Com duração de apenas 30 minutos e custando muito menos do que vale, Florence é capaz de aquecer até o mais peludo dos corações, sendo compra recomendada para quem se interessa por game design e narrativas digitais. Para os românticos, então, a experiência é indispensável, por maior que seja o risco de umedecer o globo ocular.
Nunca joguei um jogo que me fizesse chorar, é verdade. Mas este quase foi o primeiro.