Originalmente, os contos de fadas eram muito diferentes daqueles que hoje compartilhamos com as crianças. Eram histórias contadas de adultos para adultos, sem lições de moral ou finais felizes. Ao contrário: a conclusão das narrativas era frequentemente amarga, apelando para gráficas e generosas doses de violência. Chapeuzinho Vermelho, nas primeiras versões, era devorada pelo lobo, assim como sua avó, e jamais resgatada do ventre da besta. As irmãs de Cinderela amputavam os próprios dedos do pé para vestir o sapatinho de cristal, e a Bela Adormecida era estuprada pelo Príncipe Encantado. Assim como jornais sensacionalistas e filmes de horror, esses contos folclóricos buscavam – ao menos antes de passar pelo filtro de autores como Charles Perrault e os Irmãos Grimm – entreter o público com histórias macabras e cenas de violência doméstica, mandando às favas qualquer propósito educativo.
Muitos dos temas comuns aos “contos de fadas” são justificados pelo contexto em que nasceram essas narrativas: épocas de extrema escassez, em que lobos entravam nas aldeias para raptar crianças e pais abandonavam os filhos por não serem capazes de alimentá-los. Em tempos assim, a fome generalizada só não era mais assustadora que seu impacto no comportamento humano. Casos de canibalismo não eram incomuns, e assim como a fome deixaram sua marca nos contos de fadas.
Basta olhar para contos como João e o Pé de Feijão, que coloca o protagonista contra um gigante devorador de gente, ou mesmo João e Maria, em que as crianças – deixadas para morrer de fome na floresta – tornam-se vítimas de uma bruxa canibal. Também Chapeuzinho Vermelho gira em torno da comida: tanto aquela que a menina transporta em sua cesta quanto a refeição que ela própria representa para o lobo faminto. Nas versões mais antigas, Chapeuzinho chega até mesmo a comer partes do corpo da vovozinha, enganada pelo antagonista que, disfarçado de matriarca, oferece “carne e vinho” à pobre menina, fazendo-a canibalizar a avó logo antes de também devorá-la.
ERA UMA VEZ A FOME
Você não imaginaria isso olhando para mim na rua, mas eu me ligo muito em contos de fadas. Não os contos da Disney, é claro, mas os verdadeiros contos de fadas – aqueles que o povo contava séculos atrás ao redor de uma boa fogueira sob o negrume da noite. Histórias brutais de violência e horror em que a fantasia servia apenas para disfarçar o triste paralelo com a realidade daqueles tempos, quando pais eram forçados a comer os próprios filhos e a fome assumia dimensões terríveis.
Lançado em 2017 (e não sei por que esperei tanto tempo para jogá-lo), Little Nightmares conta um tipo de história intimamente relacionada aos preceitos originais dos contos de fadas. Temos aqui crianças aprisionadas, gigantes devoradores de gente e uma fome implacável que atinge tanto os vilões da história quanto a própria protagonista, uma menininha pouco maior que uma chaleira chamada Six, que luta para sobreviver em um mundo de famintas proporções.
Com influências do talentoso estúdio Ghibli (principalmente A Viagem de Chihiro) e emprestando algo de Tim Burton (em especial do livro de contos O Triste Fim do Pequeno Menino Ostra e Outras Histórias), Little Nightmares é ao mesmo tempo fofo e sombrio, delicado e assustador. O tipo de combinação que não estamos habituados a encontrar para além de raras obras (cinematográficas ou literárias) como o excelente Coraline, de Neil Gaiman, e bem o tipo de combinação de que sinto falta nas produções de terror moderno. Forçar os limites e reconceitualizar predicados é uma função da arte, como a colher que agita o fundo de um copo de achocolatado para garantir que se mantenha saboroso, e somente um jogo muito artisticamente seguro de si conseguiria a façanha de ser igualmente violento e sensível, infantil e horrendo como Little Nightmares, forçando as barreiras que separam a fofura do grotesco, o delicado do abominável, o agradável do horrível.
Desenvolvido pelo estúdio sueco Tarsier, Little Nightmares inicialmente se chamaria The Hunger (A Fome), mas os criadores se viram obrigados a modificar o nome para não serem confundidos com a série Jogos Vorazes (The Hunger Games, no original). De fato, a fome é o tema que trespassa o coração do jogo, sustentando toda a narrativa. Ainda que não exista uma história sendo contada pelos meios tradicionais a que estamos habituados – seja com diálogos, mímica ou narração –, Little Nightmares tem uma complexa e envolvente trama correndo em seus bastidores, do tipo que exige foco nos detalhes e um olhar curioso de detetive.
O enredo (ou, antes, pano de fundo narrativo) é contado majoritariamente pelo cenário. Sendo um jogo de puzzle e plataforma, é fácil se perder na resolução dos quebra-cabeças e deixar a interpretação e análise do ambiente em segundo plano. Mas há uma intrincada história sendo contada pelas fases, se você prestar bem atenção. Em uma sala ainda no início da campanha, por exemplo, nos deparamos com uma coleção de diminutas jaulas dentro das quais estão aprisionadas outras crianças. Algumas telas adiante, um zelador cego e de compridos braços embala essas mesmas crianças em um tipo de papel branco, sugerindo um comércio de criancinhas sequestradas. Até que, mais tarde, vemos esses embrulhos sendo transportados em ganchos e depositados na cozinha, onde cozinheiros vestindo máscaras disformes transformam os embrulhos em linguiça a ser servida aos convidados (os quais serão, posteriormente, eles próprios assassinados e também transformados em comida).
Assim como nas versões primevas dos contos de fadas, Little Nightmares trata essencialmente da fome e das ações terríveis a que os seres vivos são levados para saciá-la, seja satisfazendo um instinto animal, como parece ser o caso de Six, ou premeditadamente servindo crianças em uma modesta refeição para quatro pessoas, ao melhor estilo Jonathan Swift de se fazer culinária. Mas outros elementos do folclore popular também estão presentes, como a figura do gigante (todos os inimigos são muito maiores que a protagonista) e o embate entre uma criança pequena (literalmente, nesse caso) e o mundo perversamente adulto que a cerca, com todos os seus atos de desamor e antropofagia.
Apesar de sua estética bonitinha, Little Nightmares é também bastante desconfortável, não tremendo a mão ao abordar temas como suicídio, cobiça e abandono, além de se apropriar – assim como os antigos fairy tales – de uma generosa dose de violência infantil para desenvolver a história que deseja contar. Em termos de jogabilidade, esse desconforto se revela sob a forma de picos de tensão quando somos obrigados a nos deslocar por cenários onde somos caçados por vilões bem maiores que nós, muitos dos quais não fazem qualquer cerimônia para nos enfiar na boca e mastigar com vontade.
LITTLE NIGHTMARES: MAIS QUE APENAS UM PESADELO
Divertido, desafiador e narrativamente complexo, Little Nightmares é uma pérola perfeitamente redonda no saturado mar dos jogos contemporâneos, e me sinto autossabotado por não tê-lo experimentado antes. Trata-se de um conto de fadas revitalizado e moderno que serve, como o folclore tradicional, para falar sobre os problemas de nossos tempos: a ganância, a fome de poder, o pantagruelismo que praticamos tanto a nível pessoal quanto estrutural, seja em relação à comida ou aos sentimentos que digerimos e regurgitamos enquanto organismos de uma sociedade faminta por status, dinheiro e atenção. E o melhor de tudo é que também há margem para outras interpretações, incluindo algumas que falam da inevitabilidade dos comportamentos e do interminável ciclo das coisas, levando os heróis de hoje a serem os antagonistas de amanhã.
Com sua curta duração, e sem pronunciar uma única palavra, Little Nightmares consegue dizer muito mais que jogos de orçamento milionário que duram dezenas de horas, sendo em tudo uma produção na medida certa: na liberdade interpretativa que oferece ao jogador, na concisão de seu enredo, na jogabilidade simples mas criativa, que ajuda a ecoar as discussões da trama. Mais do que um pequeno pesadelo, Little Nightmares é uma grande conquista – e mal posso esperar para, em breve, contar a você o que achei da sequência.
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De pequenos pesadelos, afinal, já estamos bem servidos.