Os jogos de mundo aberto estão ficando cada vez maiores. Infelizmente, o salto quantitativo no tamanho e densidade de cenários não foi devidamente acompanhado pela qualidade de vida no deslocamento. Muitas vezes, atravessar os extensos mapas de jogos modernos é mais um martírio que uma diversão. Até mesmo jogos de alto orçamento, como The Witcher 3: Wild Hunt e Red Dead Redemption 2, acabam em alguma medida sendo arrastados para baixo pela forma como propõem a travessia de seus ambientes, que se torna enfadonha após algumas dezenas de horas. Vale observar que ambos os jogos se utilizam de montarias como principal forma de deslocamento, assim como os games da franquia Horizon e a mais recente trilogia de Assassin’s Creed – sem falar em Shadow of the Colossus, que leva o prêmio de mobilidade equestre mais desengonçada já vista em um videogame.
Parece que utilizar cavalos se tornou a norma em jogos de mundo aberto. São anos de hipismo digital no lombo de alazões diversos, e ainda assim nenhum estúdio parece ter dominado a arte de projetar uma cavalgada decente. Seja por culpa dos desenvolvedores ou da inabilidade dos jogadores, a verdade é que cavalos não combinam com mapas densamente povoados, curvas fechadas, montanhas íngremes e obstáculos em geral. Levante a mão quem já derrubou sua égua de um precipício durante uma fuga desesperada no Velho Oeste, ou acabou preso entre duas árvores ao manobrar seu corcel em uma floresta amaldiçoada. Às vezes, vale mais a pena para nossa saúde mental abrir mão do galope, amarrar nosso burro e seguir a pé colina acima (ou abaixo), sacrificando a velocidade em prol da precisão e paz de espírito.
Mas nem tudo se resume a selas e estribos, é verdade. Também há muitos jogos open world com veículos motorizados e altamente capotáveis à nossa disposição, como é o caso de Grand Theft Auto, Cyberpunk 2077, Watchdogs e tantos outros. É justo dizer que, regra geral, carros costumam ser mais fáceis de manobrar do que animais montados, mas nem por isso a dirigibilidade é menos frustrante. Em GTA V, toda pista parece ensaboada. Já em Watchdogs, os carros pesam uma tonelada. Atire a primeira pedra quem nunca beijou o poste durante uma perseguição policial ou capotou seu possante segundos depois de roubá-lo honestamente, fosse por conta dos controles, duros ou leves demais, ou da física imprevisível.
Fato é que existe uma enorme contradição entre o tamanho cada vez mais ostensivo dos mapas em jogos de mundo aberto e a forma como nos deslocamos através deles. Crescem as distâncias, mas pouco tem sido feito para nos ajudar a vencê-las de modo gratificante.
Claro, é mais fácil falar do que fazer. Afinal, há uma gama de elementos que devem ser levados em conta quando analisamos a mobilidade nos videogames: velocidade de deslocamento, precisão dos controles, responsividade dos comandos, interação entre ambiente e veículo (automotivo ou propelido à espora), sistemas de colisão e física, plasticidade do movimento e facilidade na movimentação, tudo isso agindo em conjunto (ou mais provavelmente contra) as intenções de cada jogador. A esse conjunto de fatores podemos chamar, na falta de uma palavra melhor, ludocinética¹ – a integração de mecânicas que interagem entre si para estabelecer a movimentação de avatares em ambientes digitais.
Veja bem: não se trata apenas de ajustar os motores de jogo, design de terreno, processamento de colisão e outros aspectos técnicos, mas especialmente fazer com que todos esses elementos sejam capazes de interagir entre si de maneira orgânica. Se os personagens controlados pelo jogador (ou seus respectivos veículos, inanimados ou não) são constantemente agarrados pelo cenário, ou se a velocidade de deslocamento não corresponde à frequente necessidade de cobrir grandes distâncias (como é o caso de Red Dead Redemption), significa que os desenvolvedores falharam em oferecer uma boa ludocinética aos jogadores. Por outro lado, se a movimentação é ágil e divertida, dialogando com o cenário em favor da jogabilidade – como acontece em Dying Light, Just Cause 3 e nos jogos da série Batman: Arkham –, temos então um bom exemplo desse conceito sendo levado a cabo.
E nenhum exemplo é melhor para ilustrar a boa execução dos princípios que regem a ludocinética do que o recém-lançado Marvel’s Spider-Man 2, um dos jogos tecnicamente mais afiados já produzidos para um console da Sony.
LUDOCINÉTICA EM SPIDER-MAN 2
Em Spider-Man 2, o estúdio Insomniac conseguiu alcançar um equilíbrio perfeito (e não uso essa palavra levianamente) entre um mapa denso, cheio de atividades dinâmicas, e uma mobilidade que incentiva o jogador a se locomover com fluidez pelo cenário. Mais que uma simples maneira de realizar o trânsito pelas áreas do jogo, a mobilidade em Spider-Man 2 é parte fundamental do que torna o jogo tão divertido.
Isso se deve principalmente à forma como o cenário auxilia a movimentação do jogador, em oposição à maioria dos jogos de mundo aberto em que muros, carros e obstáculos em geral se tornam um empecilho ao tráfego dos personagens. Em Spider-Man 2, todas as peças do cenário funcionam a favor da velocidade de deslocamento. Em um instante podemos correr pelas paredes de um arranha-céu e, usando o mesmo botão, nos balançar entre os prédios no momento seguinte. Postes, chaminés e dutos de ventilação servem de trampolim. Centenas de metros são vencidos em poucos segundos, e a mobilidade vertical é tão ligeira quanto a horizontal.
É possível engatar um comando após o outro para manter o personagem sempre em movimento: dispare uma teia, faça acrobacias aéreas e mergulhe por 500 metros em queda livre enquanto o vento assovia em suas orelhas. Dispare outra teia logo antes de colidir contra o asfalto para ver o Homem-Aranha se balançar com graça entre os táxis da Times Square, então faça uma curva acentuada para a esquerda e corra pelas paredes de um prédio de esquina antes de se lançar novamente ao ar, ganhando cada vez mais velocidade à medida que combina um movimento ao outro, subindo e descendo e gingando entre as paredes de becos estreitos, postes de luz e árvores do Central Park – elementos que costumam justamente atrapalhar a mobilidade em jogos de mundo aberto –, usando todo o cenário para impulsionar sua movimentação.
Todos esses elementos já estavam presentes no primeiro jogo, mas Spider-Man 2 traz novidades suficientes para tornar sua mobilidade muito superior à produção de 2018, especialmente por conta das webwings (aquelas teias no sovaco do Homem-Aranha, recuperadas diretamente dos primeiros gibis do personagem na década de 60). Esse recurso, que funciona como uma wingsuit, muda drasticamente a forma como nos deslocamos pelo cenário, tornando impossível imaginar a movimentação sem ele a partir de agora. Com as webwings é possível planar pela cidade ao toque de um botão, voando para cima e para baixo para ganhar impulso. Também há corredores de ar espalhados pelo cenário que aumentam ainda mais a velocidade de navegação.
O CENÁRIO A FAVOR DA MOBILIDADE
É muito difícil ficar parado em Spider-Man 2. Agora existem plataformas que funcionam como estilingues espalhadas por Nova York, permitindo nos arremessar para o alto e avante em questão de segundos. Até mesmo a água se tornou um instrumento da mobilidade! Se no jogo anterior afundávamos ao cair no Rio Hudson, agora o Homem-Aranha desliza com os pés pela água por alguns segundos, como se estivesse surfando. Basta saltar e abrir as webwings novamente para voltar ao ar e seguir em movimento.
Para entender um pouco mais sobre a importância da mobilidade em jogos digitais, recomendo a leitura deste artigo, no qual o cientista da computação Paul Suddaby analisa as mecânicas de movimentação de diferentes jogos e como elas impactam a experiência de gameplay. O artigo foi publicado em 2012, mas se aplica muito bem à atualidade. Curiosamente, dois jogos do Homem-Aranha são citados no texto.
De acordo com Suddaby, as mecânicas de movimento devem ser o primeiro passo no desenvolvimento de um jogo, pois é por meio delas que o jogador tem agência no mundo virtual. “Ao projetar um videogame”, ele diz, “você precisa observar qual conteúdo ocupará a maior parte do tempo do jogador e, em jogos de mundo aberto […], normalmente é o movimento”. Parece óbvio quando colocado nessas palavras, mas nem por isso é menos surpreendente constatar que tantos jogos de mundo aberto carecem de uma movimentação que seja simplesmente divertida.
SPIDER-MAN 2: MOBILIDADE EM DOBRO
Em Spider-Man 2, tudo aquilo que geralmente trava o deslocamento pelos cenários em jogos de mundo aberto é usado a favor da ludocinética. É realmente impressionante o grau de mobilidade alcançado pela Insomniac. O jogo não está isento de falhas (que serão devidamente abordadas em nossa crítica sobre o game), mas o fato de ter uma movimentação tão gostosa já é o bastante para torná-lo um dos melhores jogos dos últimos anos – e com certeza o mais fluido já produzido com o cabeça de teia.
Assim como o recente Baldur’s Gate 3 deve se tornar um exemplo a ser seguido pelos RPGs de grande orçamento na próxima década, poderíamos esperar que Marvel’s Spider-Man 2 virasse uma referência no que tende aos conceitos de mobilidade, física e interação ambiental nos jogos de mundo aberto, mas pode muito bem ser que isso jamais aconteça. O motivo é simples: mais do que qualquer outro personagem, o Homem-Aranha se beneficia da própria mitologia para alavancar a jogabilidade de games baseados em seu universo, por conta das características inerentes ao herói – apenas ele usa teias para se balançar por aí, dando cambalhotas à la Cirque du Soleil –, e sua mobilidade não é necessariamente replicável em outros jogos. O que, aliás, me faz pensar no vindouro game do Wolverine, também sob o manto da Insomniac.
Há poucas informações (quase nenhuma, na verdade) sobre o jogo do carcaju, mas é de se imaginar que ele sofrerá em termos de movimentação quando comparado aos recentes jogos do Homem-Aranha. Wolverine não voa, não se pendura no teto nem escala paredes. Minha esperança é que pelo menos deem a ele uma motoca maneira – isso se for realmente um jogo de mundo aberto, e não um sandbox mais linear como Batman: Arkham Asylum. Resta-nos aguardar e cruzar os dedos, mas a essa altura é seguro dizer que a Insomniac sabe o que faz.
Se tudo correr bem, nossa crítica de Marvel’s Spider-Man 2 deve sair nos próximos dias, assim que eu conseguir concluir a campanha. Mas confesso: fica difícil seguir as missões da história principal quando é tão divertido gastar meu tempo dando piruetas por Nova York com um gatinho rajado nas costas.
FAIXA BÔNUS
Para você que gosta de música tanto quanto eu, compartilho aqui minha receita caseira: experimente zerar o volume da música em Marvel’s Spider-Man (qualquer um dos três jogos) e substitui-la por uma playlist no Spotify enquanto transita livremente pela cidade. Fones de ouvido não são obrigatórios, mas ajudam a amplificar a experiência, assim como algumas latas de sua cerveja preferida.
Entre um disparo de teia e outro, pressione L2 a gosto no controle do PS5 (ou o botão equivalente, quando o jogo sair para outras plataformas) a fim de ativar a câmera lenta, depois quadrado para performar pitadas de cambalhota no ar. Vejo pouca gente usando o slow motion em vídeos de gameplay, mas ele é sinceramente um dos melhores recursos do jogo, tornando cada giro, mergulho e salto mortal ainda mais cinematográfico – especialmente se acompanhado de uma bem temperada trilha sonora.
Assista ao vídeo abaixo (o primeiro no canal do Antropogamer!) para ter uma ideia do que estou falando.
¹ Qualquer semelhança com certa expressão já infame na indústria de games só pode ser mera provocação.