Marvel’s Spider-Man 2 e o fantasma da agenda progressista

Com grandes preconceitos vêm grandes responsabilidades.

Minhas expectativas para a sequência de Marvel’s Spider-Man estavam altas como um arranha-céu no centro de Nova York. Olhando para trás (ou para cima), percebo que estavam altas demais, mas não sei explicar por quê. Talvez por acreditar que o segundo jogo teria tanto impacto quanto o primeiro; talvez porque Venom seja um dos melhores personagens na galeria de vilões do Cabeça de Teia. Não sei exatamente o que esperava de Spider-Man 2, mas depois de finalizá-lo ficou claro que eu estava esperando demais.

Não me entenda mal: é um jogo competente e cheio de acertos, com um ciclo de gameplay que me manteve preso como mosca em uma teia por mais de 30 horas – a maioria delas muito satisfatória. Trata-se de uma sequência que expande em quase todas as direções as qualidades do original, trazendo exatamente o que se espera de um jogo de alto orçamento como esse – porém, não muito mais que isso. Se precisasse resumir em uma frase, diria que a jogabilidade é estupidamente divertida, enquanto o enredo é divertidamente estúpido (mas isso não é bem um elogio).

SPIDER-MAN 2: BOM, MAS NÃO ESPETACULAR

Ainda que a narrativa tenha pontos altos, e seja em sua maior parte digna de uma história do Amigão da Vizinhança – especialmente no terceiro ato –, fico com a sensação de que a Insomniac tentou dar um pulo maior que suas oito pernas. Existem arcos narrativos demais para uma única história, de modo que nem todos recebem o desenvolvimento merecido. 

Temos Kraven em sua última caçada (superficial quando comparada à famosa história em quadrinhos que referencia), a origem de Venom e do simbionte alienígena, o luto por Tia May e Jefferson Davis, o desejo de vingança de Miles Morales contra Martin Li e a relação de amizade (eventualmente conflituosa) entre Mary Jane, Harry Osborn e Peter Parker – sem contar todas as missões secundárias envolvendo Mysterio, o retorno de Yuri Watanabe e um grupo de incendiários autodenominado A Chama. São personagens demais para um jogo relativamente curto¹, dando a impressão de que Spider-Man 2 nunca encontra espaço suficiente para lidar com todos os desdobramentos que o enredo pede.

Duas das melhores sequências do game, por exemplo, são aquelas envolvendo a Gata Negra e o Lagarto, mas nenhum dos dois personagens é trabalhado além do estritamente necessário para justificar sua breve participação na história. Ao mesmo tempo, a Insomniac acertou no desenvolvimento de Venom (em muito inspirado por sua contraparte do universo Ultimate, linha de HQs que deu origem a Miles Morales), mas falhou em oferecer maior profundidade a Kraven, O Caçador, peça central dos dois primeiros terços do jogo.

Kraven se resume àquilo que, no estudo de narrativas, chamamos de personagem plano: um sujeito que age sempre da mesma forma, obedecendo a parâmetros bem delimitados de uma personalidade simplória. Em outras palavras, ele é mau porque é mau, e continuará sendo mau porque sim. Kraven sofre de um inexplicável death wish, e seu único objetivo é encontrar um inimigo capaz de lhe conceder o glorioso fim que merece. Se a vontade de morrer do personagem parece obtusa e sem sentido, é porque é mesmo, e o roteiro jamais se preocupa em envernizá-la com alguma camada extra de brilho narrativo.

Essa falta de cuidado com um vilão tão importante fica ainda mais evidente se olharmos para personagens secundários que foram trabalhados com tanto esmero. Flint Marko, o Homem-Areia, é retratado como uma pessoa atormentada cujo único desejo é viver uma vida normal. Já Tia May, durante um flashback, conta que foi violinista e capitã do time de futebol, diálogo que humaniza uma figura muitas vezes retratada como bibelô motivacional nas histórias do Homem-Aranha. Mary Jane, por sua vez, é independente e ambiciosa, mas nunca deixa de se mostrar sensível e até mesmo fragilizada pelas circunstâncias; enquanto Lápide, que já havia dado as caras no primeiro jogo, é agora um trabalhador honesto que luta para se desvincular do estigma de vilão imposto pela sociedade. Até mesmo o Senhor Negativo, um dos principais antagonistas do game anterior, tem um belo arco de desenvolvimento que progressivamente aponta para uma chance de redenção. 

Todos esses são exemplos notáveis de personagens esféricos, que ao contrário de Kraven podem ser analisados sob múltiplas perspectivas: não são apenas bons ou maus, fortes ou fracos, amigáveis ou insensíveis, mas um amálgama dessas características – assim como deveria ser qualquer personagem bem escrito.

O problema é que, excetuados os casos acima, a escrita é justamente o ponto fraco de Spider-Man 2. Mesmo que o jogo tenha um ritmo equilibrado, sabendo dosar os trechos de ação desenfreada com o avanço do enredo, a dramaticidade é constantemente minada por uma narrativa fanfarrona, de muitas formas oposta àquela que vemos nas animações recentes do Aranhaverso. Enquanto estas conseguem conciliar drama e humor sem desequilibrar a balança, Marvel’s Spider-Man 2 tem dificuldade para escolher se deseja contar uma história séria e emocionalmente madura ou apenas boba e despretensiosa – e muito dessa disparidade transparece nos diálogos.

Eu poderia citar diversos exemplos da escrita frágil do jogo, mas basta um: Peter é desde o primeiro game caracterizado como um gênio da ciência, capaz de consertar um acelerador de partículas com as próprias mãos. Mas quando Harry pergunta se ele se lembra do que aprenderam na escola sobre Mendel e as ervilhas (conteúdo básico do Ensino Fundamental), Peter responde: “Acho que sei. Sobre genética, plantas híbridas e tal?”. Pois é. Não há gameplay saboroso o suficiente que ajude a engolir um diálogo insosso desses. 

SOBRE GENÉTICA, PLANTAS HÍBRIDAS E TAL

Para um jogo que fala tanto sobre ciência, aliás, a visão científica assumida por Spider-Man 2 é bastante infantil, e isso se aplica tanto às cenas de corte quanto à própria jogabilidade. Mapeamentos genéticos são feitos em um piscar de olhos: basta jogar uma amostra de sangue em um compartimento vazio e esperar um segundo pelo resultado, dando inveja a qualquer Elizabeth Holmes da vida real. Igualmente, combinações moleculares são resolvidas com o arrastar de blocos em puzzles genéricos. E mais: de acordo com o universo do jogo, tudo pode ser resolvido na base da porrada. Precisa ligar um gerador? Use os poderes elétricos de Miles para socar o aparelho, sobrecarregando-o com eletricidade. Em vez de entrar em curto-circuito e se desligar para sempre, a máquina funcionará exatamente como deveria. Uma porta de aço lacrada com travas? Basta um soco. Um motor de barco engasgado? Outro soco. Próxima pergunta? Soco.

E vou além: há uma cena que mostra o Escorpião sendo transportado de um presídio a outro. Ele está vestindo seu espalhafatoso traje verde, com cauda e tudo. Como faria qualquer pessoa racional, fui obrigado a me perguntar: Por quê? Se a roupa não sai, como o Escorpião é capaz de dormir ou fazer suas necessidades dentro daquele uniforme? E, se ela sai, por que ele estava sendo transportado com ela, e não em um uniforme prisional comum? Será que estou ficando apenas velho e chato demais? Provavelmente, mas essas são concessões que me recuso a fazer, pois vão além do pacto ficcional. Posso aceitar os poderes e todas as maluquices extravagantes típicas de gibis, incluindo o fato de o Homem-Aranha ser capaz de se grudar às paredes mesmo usando luvas e calçados, mas não consigo relativizar a incoerência de aplicações científicas em um jogo que recorrentemente se utiliza da ciência para fundamentar sua narrativa.

Também a física do jogo é extremamente mal resolvida em suas cutscenes. Saltos e acrobacias são artificiais e destoam dos momentos de gameplay, nos quais os movimentos parecem orgânicos e fluidos. Há algo nas cinemáticas que mergulha fundo no vale da estranheza, seja na expressão facial dos personagens ou na movimentação dos corpos pelo cenário. Destaco a cena envolvendo uma montanha-russa em um parque de diversões, que é ao mesmo tempo épica e ridícula por conta da física absurda das cenas de corte, completamente irrealistas.

Mas, antes de parecer que só vi defeitos, volto a dizer: Spider-Man 2 é muito, muito divertido², e tudo por conta de sua jogabilidade, que beira a perfeição. O combate é fantástico (ainda melhor que no jogo anterior), a mobilidade impecável e, tecnicamente, há muito pouco do que reclamar. É provável que você não ligue para nenhum dos problemas que apontei aqui quando estiver se balançando pela Big Apple, coletando traquitanas e esbofeteando bandidos enquanto tenta decidir qual uniforme mirabolante vestir na próxima missão. Você vai se divertir bastante, é o que quero dizer – prometo que vai. 

Exceto, é claro, se representatividade e diversidade étnica forem um problema para você, assim como têm se mostrado um problema para grande parcela de jogadores racistas e homofóbicos internet afora.

A GANGUE DOS CONSERVADORES ATACA OUTRA VEZ

Recentemente, uma nuvem tóxica de veneno conservadorista se espalhou por fóruns, blogs e canais do YouTube com críticas a uma suposta “agenda progressista” em Spider-Man 2. Tal agenda, tão real e perigosa quanto a ameaça dos comunistas devoradores de criancinhas, também atende às alcunhas de “cultura woke” (ou “lacração”, em sua nomenclatura científica brasileira) e, para quem não tem medo de falar difícil, “mimimi”, expressão que por si só verbaliza a grande capacidade intelectiva da direita conservadora.

Aparentemente, uma enorme quantidade de homens brancos heterossexuais de classe média estão vendo ameaçada sua posição de homens brancos heterossexuais de classe média frente à representação de pessoas negras, gays, lésbicas e com deficiência a que estão sendo submetidos no game de seu super-herói predileto. Isso porque Spider-Man 2 teve a ousadia de inserir um protagonista negro dividindo espaço com um protagonista branco, além de personagens secundários homoafetivos e até mesmo uma menina surda (que, para sorte dela, não precisa ouvir os comentários preconceituosos de certos youtubers no grande mar de chorume que é a internet).

Para você que caiu de (ou sem) paraquedas na situação, aqui vai o contexto: segundo a direita reacionária, a agenda woke – sob qualquer um de seus codinomes – seria uma espécie de conspiração internacional para inserir narrativas “progressistas” em séries, filmes, jogos e outros meios de entretenimento com o único intuito de destruir a família de bem, a moral e os bons costumes (ou algo assim). Logo, basta um personagem negro em uma posição de destaque, uma história de empoderamento feminino ou um casal de mulheres lésbicas em qualquer mídia que seja para que, automaticamente, uma obra seja acusada de compactuar com a agenda progressista ou ser por ela infectada.

Mas vou contar um segredo: a agenda progressista não existe. O que existe são pessoas racistas e intolerantes se utilizando de uma desculpa furada para escancarar com orgulho todo o seu preconceito, escondendo-se atrás de uma nomenclatura pseudopolítica fajuta. O que também existe são homens e mulheres historicamente privilegiados destilando seu ódio a tudo aquilo que foge de sua heteronormatividade branca ou classe social. Você não verá (ou pelo menos não faria sentido ver) pessoas negras, homossexuais ou marginalizadas reclamando da cultura woke, ou soltando farpas por se verem representadas na grande mídia. As únicas pessoas incomodadas são aquelas que 200 anos atrás estariam confortavelmente estalando um chicote no lombo de outras; ou, há menos de um século, despachando famílias inteiras para câmaras de gás.

Fiz uma extensa pesquisa antes de escrever este texto, e me arrependo de cada segundo. Naveguei por um inferno digital para saber o que as pessoas estavam pensando e dizendo sobre a representatividade em Spider-Man 2, mais ou menos como faria um encanador ao mergulhar no esgoto para descobrir de onde vem o cheiro ruim. As coisas que li e ouvi deixariam Hitler orgulhoso: gente (se é que posso chamar assim) sugerindo que Miles Morales é “menos Homem-Aranha” porque é negro; que Mary Jane não é bonita o bastante (como se essa fosse a principal função de uma personagem feminina); que a presença de uma garota surda no jogo não faz sentido, pois não há pessoas surdas que joguem videogame; que a diversidade está profanando as histórias de super-heróis (como se personagens inventados pudessem ser profanados); que a inclusão de minorias destrói as narrativas em prol de uma “agenda patética”; e disso para pior. 

Para essas pessoas (novamente, não sei se posso chamá-las assim), a mera existência de minorias ou grupos marginalizados em um jogo é vista como um ataque ideológico. O que está sendo atacado, exatamente, não sabemos – talvez a masculinidade frágil de homens adultos que cresceram em uma bolha separados da realidade. O fato é que tudo incomoda esse pessoal: linguagem neutra, dietas veganas, negros, gordos, transsexuais, cubanos, maconheiros, ateus, mendigos, feministas, bandeiras coloridas […]. 

Essa patota reclama de pautas ideológicas em Spider-Man 2 apenas porque existem bandeiras LGBT+ espalhadas pela cidade (que, ao contrário de um herói fantasiado, realmente podem ser vistas no mundo real). Mas, ironicamente, são o mesmo tipo de trogloditas que consomem jogos como Call of Duty sem parar para pensar em toda a ideologia envolvendo a glorificação americana e o papel dos Estados Unidos como principal ator político frente às “ameaças globais” – fora toda a propaganda militarista e patriótica encapsulada nesse tipo de jogo.

É inacreditável, eu sei, mas realmente existem pessoas reclamando de pautas como igualdade de gênero, amor livre, ambientalismo e direitos humanos. Infelizmente, os mentecaptos que ficam indignados por conta da presença de um protagonista negro ou de uma mulher bem resolvida em um produto audiovisual erguem as mesmas bandeiras de quem defende a pena de morte e o genocídio de povos indígenas; de quem nega a existência do racismo, mas não vê problema em chamar de “macaco” um futebolista negro; de quem duvida do aquecimento global, apesar dos constantes aumentos na temperatura do planeta; de quem gostaria de criminalizar o aborto, mas jamais pensaria em adotar uma criança desamparada; de quem defende o valor da família, desde que seja uma família aos moldes da sua; de quem acredita que todos são iguais perante os olhos de deus, mas também que alguns são mais iguais que outros. 

EM PALPOS DE ARANHA

Houve um tempo em que eu pensaria duas vezes antes de misturar um debate sociopolítico a uma crítica de videogame. Mas aqui vai outro segredo: a política está em tudo, quer você fale sobre ela ou não – e se ilude quem pensa o contrário. Estamos em guerra: basta olhar para o número de travestis, gays, mulheres e negros assassinados diariamente no Brasil. Duas semanas atrás, o corpo de uma jovem de 21 anos foi encontrado no Maranhão. Ela teve o couro cabeludo, a pele do rosto, os olhos e as orelhas arrancados. Ana Caroline era lésbica, provável motivo pelo qual foi assassinada.

Somos o país que mais mata transsexuais no mundo, mas ainda assim existe um exército de imbecis ansiosos para reduzir essas mortes a termos como “militância” e “lacrolândia”. Para quem realmente se importa com a preservação da vida de outros seres humanos, é necessário tomar partido – e não se posicionar já é tomar uma posição.

Há centenas de vídeos e literalmente milhões de comentários na internet exaltando o posicionamento de influenciadores que regurgitam sem medo seu repúdio à diversidade em Spider-Man 2 – e, por extensão, à diversidade em geral. Pessoas como essas instalariam regimes fascistas com um estalar de dedos se pudessem. São a escória da escória, e espero honestamente que você não seja uma delas. Mas, se for, por favor: feche a janela e não volte. O Antropogamer demanda seu boicote. Do contrário, se estiver do lado certo da discussão, considere compartilhar este artigo em suas redes sociais, com seus amigos e principalmente inimigos, para que possamos erguer nossas vozes contra esse discurso medieval que se prolifera na direita conservadora.

No fim do dia, aqueles que se mostram tão indignados com a presença de negros, homossexuais e pessoas com deficiência em seu joguinho do Homem-Aranha deveriam apenas se perguntar: O que meu herói favorito pensaria disso?

 

 

 

 

¹ Ainda que, devo dizer, a duração da campanha per se me pareceu ideal, considerando o tamanho inflado que costumam ter os jogos de mundo aberto hoje em dia.

² Muito, muito divertido mesmo, caso eu não tenha deixado claro.

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