Disco Elysium se inicia exatamente como se iniciava qualquer segunda-feira quando eu tinha 20 anos: acordando seminu no chão de um quarto em ruínas, o corpo arrasado pela fúria de uma bebedeira oceânica, cercado por garrafas vazias e sem saber que p**** aconteceu dessa vez.
Aparentemente, a bebedeira foi tão disco que a Mãe das Ressacas bateu pessoalmente na sua porta para confiscar toda a sua memória. Seu corpo levanta uma bandeira branca, implorando trégua. A luz é como areia em seus olhos. Você não se lembra do que aconteceu no dia anterior, nem nos dias antes dele. Aliás, em que ano estamos? Pensando bem, você não lembra sequer do seu nome, muito menos do rosto que olharia de volta para você se tivesse coragem de se olhar no espelho – eu não tive, e por isso o retrato do personagem no canto da tela permaneceu uma silhueta amorfa.
Eventualmente você escapa do quarto. É um quarto de hotel. Você se localiza, tenta pedir informações. As pessoas riem de você. Assim como na vida real, você é uma piada. Conversando com os personagens que pululam esse universo, você logo descobre ser um detetive da Milícia Cidadã de Revachol – o mais próximo que existe de uma organização policial nesse mundo. Também descobre que perdeu sua arma, seu distintivo e sua credibilidade depois de ameaçar atirar contra a própria cabeça durante um porre suicida no saguão do hotel. Parece que você queria provar um ponto, e achou que a melhor forma de fazer isso seria colocando um revólver na boca.
Espere, tem mais: pelo que estão dizendo, você chegou dias atrás para investigar o assassinato de um homem nas imediações do hotel, mas tudo o que fez desde então foi encher a cara e provocar o caos. Lá fora, um cadáver enforcado espera diligentemente há mais de uma semana, apodrecendo ao relento na primavera. A boa notícia? O Tenente Kim Kitsuragi, um dos mais consistentes sidekicks da ficção policial, será seu fiel parceiro nesta investigação – sem contar o fato de, você sabe, Disco Elysium ser um dos melhores e mais bem escritos jogos da última década.
DISCO ELYSIUM: UM RPG HARDCORE
Se tivesse que definir Disco Elysium em uma palavra, seria “subversão”. No (des)controle de H**** D* B***, o protagonista do jogo (cujo nome você terá de descobrir por conta própria), conhecemos a cidade com os olhos de quem a vê pela primeira vez – como se fôssemos uma criança, mas uma criança de costeletas e hábitos tabagistas. Em termos de storytelling, é para isso que serve a amnésia supostamente alcoólica do protagonista: para colocá-lo na mesma posição do jogador, alguém que não sabe nada sobre aquela realidade, à medida que ambos (você e o personagem) descobrem juntos o mundo de Elysium. É um recurso batido, mas que se torna genial por seu uso inesperado: não é qualquer pessoa que está sofrendo de amnésia, e sim um detetive. H**** não consegue nem mesmo desvendar o próprio nome, quem dirá uma conspiração de assassinato.
É como contar a história de um escritor analfabeto, ou de um mergulhador que não sabe nadar – e eles são dependentes químicos; e eles são suicidas. O próprio mote de Disco Elysium (controlar um detetive que não se lembra de ser um detetive) é uma das características mais subversivas do jogo. Mas há outras a discutir nos parágrafos abaixo.
Mecanicamente, Disco Elysium pode ser descrito como um point and click com elementos de RPG. Até aí, nada de novo. Mas ele brinca com as expectativas ao subverter vários dos principais predicados de um role-playing game. A começar pelo sistema de habilidades: há 24 delas, e todas têm personalidade própria. Isso mesmo, suas habilidades estão vivas e dialogam com você – como se fossem personagens corporificados, com vozes e trejeitos característicos –, representando o diálogo interno que temos, no dia a dia, com os diferentes “eus” de nosso cérebro ancestral.
Na prática, as skills do personagem se comportam como se fossem pessoas de verdade, ainda que sejam apenas pedaços da identidade neurologicamente estropiada do protagonista. A habilidade Eletroquímica, por exemplo, representa a parte de seu corpo que quer festejar, transar, beber e usar drogas. Ela diz a você para lamber uma poça de rum sobre a mesa, cheirar rebite e fumar de uma só vez aquele maço inteiro de cigarros – e em seguida fumar outro. Volição, ao contrário, representa sua determinação diante do infortúnio de ser você mesmo. É a parte de você que ajudará a manter o moral elevado e os erros sob controle.
Instrumento Físico, por outro lado, é o quinhão de sua personalidade que gostaria de resolver tudo na porrada – uma habilidade cujas falas são sempre misóginas e agressivas. Já Enciclopédia representa todo o conhecimento armazenado em sua mente, o útil e o inútil. Essa habilidade oferece detalhes, trívias e curiosidades que teoricamente poderiam auxiliar você em seu trabalho investigativo, mas provavelmente não irão. A habilidade Drama tem uma fala afetada, como um ator ruim, e gosta de oferecer soluções dramáticas; enquanto Meia-Luz, que representa seu instinto de sobrevivência, prefere rosnar ameaças para instilar medo no coração do protagonista.
Além de conferir vozes e personalidades ao quadro de skills, Disco Elysium insubordina-se às tradições do RPG ao transformar as batalhas de chefe em… diálogos. Quer mais subversão que isso? Pode parecer sem graça à primeira vista, mas juro que funciona. Imagine o cenário: ao conversar com o líder do sindicato de estivadores pela primeira vez, você é convidado a se sentar em uma cadeirinha de plástico diante da monolítica mesa dele. Dependendo de suas habilidades, você pode permanecer de pé, mas é provável que seja obrigado a se sentar. A conversa se inicia. Você faz perguntas e ouve as respostas. Ele se esquiva, é um cara ardiloso. A cadeira em que você está sentado parece cada vez mais desconfortável, até que começa a machucar fisicamente as costas de nosso herói – menos um ponto em sua barra de Saúde. Pouco depois, o sujeito menciona a arma que você perdeu (a mesma que, estão dizendo, quase espalhou seu cérebro pelo saguão do Whirling-in-Rags), e lá se vai um ponto de Moral. O parlatório segue assim até que você esteja morto ou coisa pior.
Dependendo de sua abordagem, escolhas e habilidades, é possível encerrar o diálogo com informações que o ajudarão a resolver o caso, ou morrer ali mesmo sem jamais ver o fim da conversa, acometido por um misto de vergonha e hérnia de disco fulminante.
Também as roupas são criativamente subversivas em suas aplicações. Como de hábito no gênero role-playing, cada peça do vestuário oferece buffs e debuffs. Isso significa que você estará na maior parte do tempo vestido como um idiota, apenas porque aquele sapato de pele de cobra adiciona um ponto extra em sua habilidade de Compostura. Normal, eu sei. Mas o bacana é que o próprio jogo faz piada com isso, muitas vezes chamando atenção para as indumentárias do protagonista ou contextualizando seu vestuário por meio da narrativa.
Entre outras roupas de menor e maior extravagância temos, por exemplo, uma gravata falante (ainda que só você consiga ouvi-la); um conjunto de roupas esportivas intimamente conectadas ao passado do protagonista; e até mesmo uma armadura de cerâmica virtualmente indestrutível, cujas peças devem ser coletadas ao longo do jogo. Ironicamente, como se zombando dos tropos de RPG, a armadura só pode ser completamente vestida depois que resolvemos o caso, quando já não tem mais utilidade. Subversivo, não?
Considere também o fato de que o jogo se passa em um mundo pré-apocalíptico, nadando na contracorrente das centenas de jogos pós-apocalípticos que inundam o mercado, e temos aqui um dos games mais brilhantes dos últimos tempos. Disco Elysium pode não ser revolucionário ou mecanicamente inovador, mas mostra que é possível se apropriar de ideias já solidificadas (e muitas vezes saturadas) para projetar novas e criativas abordagens capazes de ventilar a indústria – e nisso reside seu brilhantismo.
O INÍCIO DO FIM
Podemos dizer que o assassinato do homem enforcado é o eixo narrativo de Disco Elysium – prova disso é que o jogo se encerra tão logo solucionamos o caso. Mas o assassinato, com suas implicações e consequências, é apenas isto: um eixo que faz girar as rodas que efetivamente movimentam a história.
Assim como True Detective (em particular a primeira temporada), Disco Elysium está menos interessado no assassinato como ponta de lança para conduzir o enredo do que como plataforma para discutir questões extremamente humanas. Se na série de Nic Pizzolatto o homicídio era um pano de fundo para debater temas como luto, existencialismo, religião e filosofia, em Disco Elysium ele é o ponto de partida de uma espiral que lentamente se abre para abranger discussões sobre política, livre mercado, arte, comunismo, fascismo, religião, abuso de drogas, suicídio, violência, alcoolismo, depressão, pobreza e solidão – temas que extrapolam o realismo mágico do jogo para dialogar diretamente com nosso mundo.
Apesar de sua densidade temática (ou quem sabe para contrapô-la), Disco Elysium é um dos jogos mais engraçados que já joguei. Há muito humor aqui, em doses potencialmente letais, incluindo uma descrição tão sublime de uma carteira de cigarros que quase derrubei uma lágrima quando a li pela primeira vez (de pura inveja, lógico, por não ter sido eu a escrevê-la):
“Aí está, um pequeno exército corajoso no seu bolso. O Primeiro Pelotão de Cigarros. Vinte bravas almas de pé em saudação, prontas para entrar no fogo por você, senhor”.
C******, é só o que consigo dizer. Temos aqui uma escrita da mais alta estirpe: elegante, mas irreverente; sarcástica, mas poética. Fosse um livro, Disco Elysium seria um dos grandes – e não apenas na largura da lombada. Entretanto, calhou de ser um jogo, e como tal é um dos melhores. Mas também um dos mais deprimentes. Basta rodar Martinaise em suas botas de gendarme para perceber que o sofrimento é a regra, e não a exceção entre a hoi polloi de Revachol. Você pode dizer a si mesmo que é diferente deles. Que você é Tequila Sunset, uma alma livre. O Andarilho do Fogo, o Tira Eremita, o Tenente do Amor¹. Mas, no fim do dia, tudo o que resta é a carcaça de um policial alcoólico cheirando pyrholidina debaixo da neve junto a outros perdedores como ele. A cidade não tem salvação. Você não tem salvação. Em Disco Elysium, viver é um ato de rebeldia – e nem parece valer o esforço.
Hilária e deprimente, reflexiva e niilista: assim é a trama de Disco Elysium, entre tantas outras adjetivações possíveis. Mas afinal, pergunta o leitor menos paciente, qual é a p**** da história do jogo? E para esse afável leitor dedico o intertítulo abaixo.
A P**** DA HISTÓRIA
A história do jogo se passa no universo fictício de Elysium, um mundo distinto do nosso, mas nem por isso menos familiar – racismo, violência policial, narcotráfico, abandono infantil e discursos de ódio são apenas alguns dos tristes paralelos com nossa realidade.
Evocando o conceito de one city block proposto por Warren Spector, o jogo se desenrola em uma pequena área de uma grande cidade. Com isso, quero dizer que todo o mapa se resume a dois ou três quarteirões do bairro portuário de Martinaise, uma pequena área da cidade de Revachol. O que vemos ao longo do jogo, portanto, é apenas uma fatia de um vasto universo – e não é uma fatia particularmente bonita.
Outrora considerada a “capital do mundo”, Revachol já foi a maior exportadora de cocaína em Elysium, durante um fértil período econômico conhecido como Regnum Cocainum – título que imagino estampando um álbum de power metal ou a biografia de certos políticos brasileiros. Entretanto, a cidade entrou em declínio após o fracasso administrativo de seus monarcas. Décadas antes do início do jogo, uma sangrenta revolução comunista depôs o último suserano e tomou o controle da cidade. Mas o governo dos communards não durou. Eventualmente, a Coalizão das Nações – uma aliança entre países não comunistas – atacou Revachol, assumiu o poder e enterrou os revolucionários. Nas décadas seguintes, a cidade presenciou ainda uma guerra civil, um surto de sarampo e um acidente radioativo, sendo mergulhada em uma grande depressão econômica e ideológica.
Quando Disco Elysium começa, quase 50 anos depois da revolução comunista, encontramos uma Revachol ainda fragilizada por toda essa trágica cadeia de eventos. De crianças viciadas em anfetamina à falência generalizada de empreendimentos comerciais, muitas e graves são as expressões do rebote pós-guerra que ainda castiga os revacholianos.
Martinaise, em especial (não por acaso escolhida como cenário do jogo), é a parte da cidade que melhor reflete o revés moral e financeiro que mordeu os calcanhares de Revachol. Ao contrário de outros bairros, Martinaise não foi revitalizada após a guerra. Em vez disso, a Coalizão decidiu manter a área em escombros, como um monumento à eficácia de sua própria artilharia – e um lembrete contrarrevolucionário para as gerações futuras. Agora engolida por um porto industrial e controlada pelo sindicato dos estivadores, Martinaise é uma cicatriz na face de Revachol, com seus prédios decrépitos e ruas bombardeadas servindo de palco para as tragédias pessoais de quem ousa (sobre)viver ali.
Há todo tipo de cenários e situações a serem descobertos em Disco Elysium: uma área comercial supostamente amaldiçoada que leva qualquer empreitada à falência. Uma caminhoneira cujas lembranças se fundiram às memórias de outras pessoas. Uma greve no porto que pode rapidamente escalonar para um confronto civil, ameaçando lavar as ruas de sangue. Um homem tão rico que seu patrimônio líquido altera as leis da Física para curvar a luz ao seu redor. Outro que, ao contrário, era um bem-sucedido diretor criativo, mas foi arrastado por uma kafkiana maré de azar depois de perder as chaves de casa, sendo obrigado a morar na rua – uma história tão inverossímil que só pode ser verdade.
Todas essas narrativas são como pequenos diamantes (daqueles falsificados, roubados e penhorados em troca de droga, mas ainda assim diamantes). São histórias tristes e absurdas e maravilhosas, e o jogo está recheado delas. No entanto, por mais interessantes que sejam esses contos locais, o que realmente faz meus olhos de festa² brilharem é a narrativa externa ao bairro de Martinaise. Isto é, aquela que nunca vemos efetivamente se desenrolar, mas à qual temos acesso por meio das conversas que travamos com outros personagens, pela leitura de livros (adquiridos na charmosa livraria Crime, Romance & Biografias de Pessoas Famosas) ou por meio de nossas habilidades. Segmentada em camadas que exigem faminta atenção aos detalhes, há uma narrativa de importância global sendo contada fora de Revachol – uma que envolve igualmente o passado, presente e futuro de Elysium.
Mas, para entender a história, precisamos antes entender a geografia.
A P**** DA GEOGRAFIA
O mundo de Elysium é gigantesco. Para título de comparação, este é um mapa oficial do Distrito de Jamrock, parte da cidade de Revachol, com Martinaise (único local que visitamos durante o jogo) localizada no extremo norte:
Já este é um mapa não oficial de Elysium, construído a partir das informações disponibilizadas dentro do jogo. Observe Revachol sinalizada no continente (ou isola) de Insulíndia, na ilha Caillou:
Como se pode depreender pelo tamanho do mapa, muita coisa já aconteceu (e segue acontecendo) no universo do jogo. O assassinato e as investigações paralelas do protagonista são, na melhor das hipóteses, um esforço insignificante no esquema geral das coisas. Assim, penso que as melhores histórias de Disco Elysium não são aquelas que encontramos em missões principais ou secundárias, e sim as que se desenvolvem longe de nossos olhos, com as quais temos pouco ou nenhum contato ao longo da campanha. Vale dizer que boa parte dessas narrativas se passa em um futuro próximo (sobre o qual falaremos adiante), e delas vislumbramos meros fragmentos, pois excedem o escopo de nossa investigação policial.
Cito, entre as narrativas fragmentárias que me tiraram o sono: o mistério dos Assassinatos da Bala Quadrada, cuja resolução é sugerida apenas no minuto final de jogo; Le Retour, a revolta revacholiana que será deflagrada dois meses após os eventos de Disco Elysium; o horrendo bombardeio nuclear que destruirá Revachol em duas décadas; e o que talvez seja o ponto mais criativamente perturbador no universo de Elysium: os efeitos do Pálido e as consequências de seu avanço sobre o mundo.
Observe que Elysium é formado por isolas (largas porções de matéria) separadas por um tecido conjuntivo imaterial, incolor e inodoro conhecido como Pálido (a parte cinzenta que separa as regiões no mapa acima). O Pálido é, portanto, uma espécie de antimatéria. Durante o jogo, é dito que essa “não substância” cobre 72% do mundo, mas está em constante expansão. Em algum momento nos próximos anos, Elysium será engolido. Todos irão morrer e não há nada a ser feito. Encontramos diversos prenúncios desse desastre ao longo do jogo, ainda que eles possam ser facilmente tomados por paranoia do protagonista. Mas a verdade é que, desde muito cedo, o destino de Elysium esteve selado. Desde que, anos antes do desenvolvimento do jogo, um curioso livro chegou às prateleiras de livrarias estonianas.
SACRED AND TERRIBLE AIR
Em 2013, o escritor Robert Kurvitz, que também assina o jogo, publicou a novela Sacred and Terrible Air. O livro se passa no mesmo universo de Disco Elysium, mas conta uma história bem diferente, em outro lugar e outra época – décadas no futuro. Na obra, é dito (de maneira bastante sucinta) que Revachol foi dizimada por uma bomba nuclear, e que o Pálido avançou sobre grandes massas de terra em diferentes locais do mundo, o que comprova os nacos de informação que o jogo nos oferece por meio das habilidades Calafrios, Meia-Luz e Esprit de Corps, que descrevem para o protagonista cenas do futuro – um futuro confirmado pelo livro de Kurvitz.
Agora, aqui vem a parte realmente interessante: um dos efeitos do Pálido sobre a mente humana é distorcer a memória, mas também vincular dados (lembranças, por exemplo) através do tempo. Especula-se que certas pessoas sensitivas no mundo de Elysium são capazes de interceptar informações do futuro – seja uma ideia, uma canção ou instruções técnicas. Ao converter essas informações em um produto material (como uma obra de arte, uma faixa de áudio ou novas tecnologias), forma-se um paradoxo temporal que distorce a realidade – afinal, uma criação não pode existir antes de seu criador. Teoriza-se que o Pálido seja uma expressão do mundo para corrigir esse roubo material do futuro, compensando, com grandes porções de imaterialidade, toda a matéria que ainda não deveria existir³.
Durante o jogo, descobrimos a existência de um buraco de 2 mm no espaço-tempo – um pequeno ponto de infiltração do Pálido que, localizado em uma construção abandonada de Martinaise, provavelmente crescerá para devorar tudo ao redor. Essa descoberta é feita em uma missão secundária, que nem mesmo precisa ser finalizada para concluir a campanha, mas representa uma peça-chave para entender o passado recente do protagonista e o destino de Elysium. Afinal, se o Pálido é capaz de apagar memórias e revelar o futuro, não estaria nosso anti-heroico detetive conectado a ele de alguma forma? Talvez por isso você não se lembre de nada. Talvez por isso você seja capaz de vislumbrar o futuro. Ou, quem sabe, eu esteja falando bobagem, pois o jogo deixa essa e muitas outras questões em aberto, esperando que você complete as lacunas. Essas são minhas conjecturas, ruminadas de mim para mim mesmo depois de finalizar a campanha duas vezes. Mas diferentes pessoas farão diferentes leituras, e é por isso que incentivo você a jogar e tirar suas próprias conclusões.
Disco Elysium está cercado de mistérios e narrativas paralelas que quebram a barreira do fim do jogo e se estendem para além de sua conclusão, fazendo-nos coçar a cabeça enquanto tentamos juntar as peças que nos foram dadas ao longo desse um milhão de palavras4. Há um encerramento para a narrativa, sim, mas para além desse final há vários outros que só poderão ser alcançados pela imaginação do jogador. Essa é uma escolha artística que muito me agrada, e inevitavelmente me remete à similar estrutura do livro Graça Infinita, que propõe ao leitor conectar os pontos para chegar ele mesmo à conclusão de certas linhas narrativas.
Assim como fazem as melhores histórias de suspense e mistério, Disco Elysium incentiva-nos a retornar a ele uma e outra vez em busca de novas pistas que ajudem a solucionar o caso de uma vez por todas; que nos permitam resolver um quebra-cabeça que, insensível aos nossos esforços, nunca parece totalmente completo.
O BOM, O MAU E O BÊBADO
Graças à imensa versatilidade de Disco Elysium, fui muitas coisas em minha última campanha, assumindo várias das múltiplas personas que o jogo me oferecia. Entre outros “tirótipos”, interpretei o Pedintira5: uma mistura de policial e sem-teto que reciclava garrafas para pagar um quarto onde dormir à noite. Como Tira Artista, patrulhei o estado da arte, prendendo criminosos tanto nas ruas quanto na imprensa escrita e nas galerias de arte. Encarnei ainda um fervoroso policial comunista, recebendo bônus de experiência por cada resposta mazoviana que selecionava durante os diálogos. Não menos simbólico, fui também o Tira do Apocalipse, nom de guerre que recebi do jogo por insistir em prenunciar a vinda de τὰ ὅλα, evento cataclísmico no qual o Pálido varrerá o mundo em 27 anos – ainda que, claro, ninguém tenha me dado ouvidos.
Emulando a vida real, chutei a cabeça de um racista que exaltava a eugenia, bebi durante o serviço e fracassei na maioria dos desafios que me foram propostos. Fui um detetive absolutamente ordinário (iniciando o jogo com todas as aptidões no nível Médio), mas também um leal defensor dos interesses do povo e um policial apenas parcialmente corrupto. Quem sabe que tipo de detetive serei da próxima vez?
Se fiz meu trabalho direito, você já deve ter entendido: Disco Elysium é um jogaço. Nem por isso, infelizmente, está livre de problemas. O primeiro deles se refere a certos desencontros entre a escrita e o contexto do jogo. Esses lapsos estão vinculados a uma aleatoriedade de fatores, como a localização do protagonista no mapa, escolhas de diálogo e horário in-game, e podem ou não assolar a brincadeira dependendo de seu estilo de jogo. Você saberá que encontrou uma dessas falhas quando, por exemplo, a narração sugerir que dois personagens estão assistindo ao pôr do sol quando já passa da meia-noite; ou quando desmaiar de madrugada, sozinho em seu quarto, e acordar pouco depois no meio da rua. São limitações compreensíveis, mas não deixam de incomodar – ainda mais pela excelência de todos os outros elementos que compõem o jogo. Por isso, nas (poucas) vezes em que encontrei esses engasgos narrativos, não pude deixar de ficar desapontado.
É como se os desenvolvedores tivessem projetado certos diálogos para se encaixar em um modelo-padrão de experiência de jogo, sem considerar opções com menor chance de ocorrência – estatisticamente, na situação que mencionei, seria mais provável um jogador desmaiar no meio da rua do que dentro do quarto de hotel, como aconteceu comigo. Encontrar esses gaps, portanto, é uma questão de azar probabilístico. Não me lembro de observar essas falhas na primeira vez em que terminei o jogo, lá em 2020. Mas encontrei-as desta vez. Você pode descobrir outras em sua própria experiência – ou, se tiver sorte, não topar com nenhuma.
O segundo e maior problema de Disco Elysium, a meu ver, é o timing de seu desfecho. Não que seja um final ruim, muito pelo contrário. Mas o jogo termina quase imediatamente após a resolução do caso principal, tornando o encerramento anticlimático. Lembra-se de quando falei que o assassinato era apenas um pano de fundo? Justamente por isso, a decisão de encerrar a campanha minutos após a conclusão do caso me parece apressada. Há um último e importante diálogo, no qual algumas perguntas são respondidas e outras se abrem sem resposta, e em poucos minutos sobem os créditos. Ironicamente, é um final precoce para um jogo que dura mais de 50 horas. Certas conversas, por exemplo, à luz de importantes eventos na reta final do jogo, acabam ficando por conta de nossa imaginação – como no caso dos criptozoologistas. A sensação que tive ao terminar a campanha, tanto agora quanto no passado, é de que o jogo se beneficiaria de mais uma ou duas horas de duração.
E porque não quero apenas reclamar, mas também oferecer soluções, penso que seria muito melhor se pudéssemos retornar à cidade após esse derradeiro diálogo e finalizar as missões pendentes, ou descobrir segredos que deixamos por revelar. Poderíamos conversar com os habitantes da cidade sobre nossas descobertas finais e, quem sabe, nos vangloriar como verdadeiros imbecis por finalmente concluir o caso, enquanto as pessoas continuariam rindo de nós e nada realmente mudaria. Quando estivéssemos prontos para encerrar a experiência, bastaria seguir para a viatura estacionada na praça, ou na vila de pescadores, e manobrar nosso herói para fora do jogo.
DISCO ELYSIUM: DU CRISTAL À LA FUMÉE
Na primeira vez em que joguei Disco Elysium, admito que me deixei levar pelo caráter desgracento do protagonista, chafurdando em escolhas de vida e opções de diálogo que apenas reforçavam sua personalidade trágica. Dessa vez, contudo, me permiti caminhar lado a lado do personagem para tentar ajudá-lo, com a intenção de que não fosse mais uma vergonha a si mesmo após o fim da aventura. Fui, desse modo, capaz de perceber nuances da narrativa que me escaparam da última vez, abrindo (e às vezes arrombando) portas que minha encarnação prévia havia feito questão de fechar. Da mesma forma, os desastres anunciados de um futuro próximo – a bomba e o Pálido –, que haviam me passado mais ou menos batidos na primeira campanha, tornaram-se agora objeto de obsessão, conduzindo-me a leituras internas e externas ao jogo para tentar compreendê-los. E sinto que há mais a ser encontrado em uma eventual e inevitável terceira campanha.
Como um bom vinho Commodore Vermelho, Disco Elysium envelhece deliciosamente bem, (re)convidando os jogadores a novas experiências que realçam os já acentuados sabores de seu complexo roteiro.
É uma pena que, no fim das contas, o verdadeiro assassino dessa obra-prima seja a própria desenvolvedora do jogo. Isso porque, contrariando todos os discursos anticapitalistas propostos pelo game, a ZA/UM enterrou Disco Elysium em uma cova judicial de direitos autorais, discussões trabalhistas e alegações de comportamento tóxico. Pelo andar da carruagem, parece improvável que uma sequência veja a luz do dia – mesmo porque seu criador, Robert Kurvitz, foi demitido do estúdio junto a outros profissionais que deram vida ao jogo, como roteiristas e ilustradores.
Parece um tipo de maldição: Sacred and Terrible Air, romance que originou o universo de Elysium, foi planejado para ser o primeiro livro de uma série, assim como Disco Elysium seria o primeiro jogo de uma franquia. Ambas as iniciativas foram, de diferentes formas, bem-sucedidas em seu propósito, mas fracassaram enquanto projetos de longo prazo. Por outro lado, faz sentido: em Elysium, vencer nem sempre é garantia de sucesso, assim como as derrotas são frequentemente mais interessantes que a vitória. Disco Elysium é, aliás, um jogo sobre o fracasso – da revolução comunista, do amor-próprio, das instituições, da família, do capital e da própria vida.
Mas está tudo bem, afinal de contas. Somos apenas um brilho fugaz no globo espelhado da discoteca da vida. Dançamos o melhor que podemos dançar, tentando acertar uns passos sem cair de bunda no chão, e então cruzamos os dedos para não vomitar em ninguém até o fim da festa. É tudo o que podemos fazer. Enquanto isso, resta-nos curtir a ressaca de nossa própria existência, sapateando sobre o destino e tirando as Fúrias para dançar. Como diz o próprio jogo, na voz barítona de Lenval Brown:
“Quando um homem coloca sua mente e corpo em alguma coisa e dá cento e dez por cento, às vezes ele acaba se mijando. Isso simplesmente acontece. Não há vergonha nisso”.
Podemos fracassar quantas vezes forem necessárias, mas nunca abandonar nossas pequenas e estúpidas esperanças, por menores e mais estúpidas que elas sejam. Quero dizer: você pode se mijar um pouco, não há vergonha nisso – é um sinal de que está se esforçando. Pelo menos foi essa a mensagem que tirei do jogo, e há muitas outras que você pode tirar também.
¹ A localização de Disco Elysium para o português é de tirar o chapéu. Traduções como “chocho”, “pirocudo”, “porcopérnico”, “patuscada”, “encapetado”, “cafungo”, “zé-droguinha”, “correria” e “goró” abriram sorrisos no meu rosto.
² Olhos de festa:
³ Penso que essa seja uma das mitologias mais inventivas já criadas para um universo ficcional. É curioso notar, porém, que a ZA/UM não faz questão de propagandeá-la. Ao contrário: preferiu desmembrar e esconder essa mitologia sob toneladas de diálogos, narrações, pensamentos e reflexões tematicamente divergentes, obrigando o jogador interessado a realizar alguma arqueologia para desenterrá-la.
4 Segundo a produtora do jogo, esse é o número de palavras contidas na narrativa de Disco Elysium – o mesmo que, somados, Guerra e Paz, Crime e Castigo e Moby Dick.
5 Hobo-cop, em inglês. Um daqueles raros casos em que a tradução quase superou o original.
10 comentários em “Medo e delírio em Disco Elysium”
Brabo demais, deu vontade de jogar pq parece doido!
Parabéns pelo excelente texto sobre essa obra-prima dos games!
Agradeço pela leitura, meu amigo. Abraço!
Você construiu uma análise extremamente rica a respeito do jogo. Quase trascreveu a jogatina. Parabéns! Traga mais trabalhos assim no futuro.
Grato pela leitura. Se gostou desse texto, considere conferir nosso artigo mais recente, sobre Demon’s Souls. Tentei criar uma mistura entre prosa em segunda pessoa e resenha crítica para emular a sensação que tive com o jogo. De certa forma, acho que dialoga com a proposta desse artigo sobre Disco Elysium. Abraço!
Pingback: Regras do Jogo #216 – Medo e delírio em Disco Elysium - Holodeck
Estava pesquisando sobre Disco Elysium e achei seu texto. Simplesmente fantástica a sua capacidade de escrita coesiva sobre o jogo, além de trazer tanta coisa que eu sequer suspeitava, como O Pálido, não desanima a leitura. Tenho agora mais uma desculpa para rejogar essa obra-prima.
Grato pelo comentário, Gilberto. É sempre bom receber feedback de nossos leitores. Espero que volte mais vezes para conferir outros textos (toda segunda-feira sai um novo artigo). Abraço!
que texto excelente, zerei o game recentemente e como sempre faço, vim atrás de informações que me trouxessem um pouco mais da historia desse delicioso game.
Confesso que o final também me deixou levemente desapontado pelo fato de ter inumas questões que aparentemente ficam abertas após aqueles diálogos finais.
De resto, gostei tanto da sua escrita que vou começar a seguir a pagina ! Parabéns
Grato pela leitura, Everton! É sempre bom receber feedback de nossos leitores. Também é bom saber que não estou sozinho: é um final por demais aberto para um jogo tão obcecado pelos detalhes, certo? Fique à vontade para nos seguir também em nossas páginas do YouTube e Instagram, ambas linkadas no topo da home. Toda segunda-feira sai um novo texto, ou pelo menos é esse nosso objetivo. Abraço!