Se tem algo que a série Resident Evil soube fazer ao longo desses quase 30 anos de existência foi se reinventar. Da mesma forma que as armas biológicas que povoam sua narrativa, a franquia da Capcom jamais deixou de sofrer mutações inesperadas para se transformar, bem diante dos olhos do jogador, em novas e inquietantes criaturas. A cada tantos anos a série adota uma postura completamente diferente da anterior, trocando de identidade como, na lua cheia, um licantropo troca de pele.
TRÊS DÉCADAS. TRÊS TRILOGIAS.
Desde o princípio os jogos numerados da série se organizam em trincas. Se a trilogia original tinha os dois pés fincados no horror de sobrevivência, os três jogos seguintes chegaram com voadoras para aproximar Resident Evil de sua contraparte cinematográfica, tornando-se essencialmente jogos de ação com elementos de terror. Por mais que não tenha sido sempre bem-sucedida em suas tentativas, é louvável o esforço da Capcom para se reiventar constantemente, sem medo de sair de sua zona de conforto para se arriscar em águas desconhecidas.
E foi na atual trilogia da “saga” que tivemos a mudança mais significativa. Enquanto Resident Evil 6 foi uma galhofagem de ação cooperativa e narrativa frouxa (ainda que alcançando bons números de venda), Resident Evil: Biohazard (ou Biohazard: Resident Evil, na terra do sol nascente) mostrou-se uma experiência em tudo oposta aos três jogos que o precederam: saem a câmera sobre o ombro, os vilões de desenho animado e as cenas em câmera lenta para dar lugar à visão claustrofóbica em primeira pessoa, antagonistas perversamente humanizados e cenas que estão entre as mais brutais da história dos videogames.
Foi com Biohazard que voltei a ter a sensação que tinha quando jogava, aos 11 ou 12 anos de idade, os primeiros jogos da série no Playstation original – experiências que me eram completamente aterradoras. Em vez dos tradicionais zumbis (que já estavam até pilotando motocicletas), temos no sétimo capítulo da série uma família caipira, canibalesca e aparentemente imortal que evoca o pavor do desconhecido, do redneck que não respeita as regras sociais e pode fazer o que bem entender em seu cantinho de pântano sujo e mal habitado.
É verdade que Biohazard também nos apresenta a inimigos mais próximos dos mortos-vivos que conhecemos (os Mofados, seres cobertos por uma gosma negra), além de amarrar as pontas no final da história para dizer com todas as letras que sim, essa narrativa maluca se encaixa no universo de Resident Evil. Mas a mudança de perspectiva e o tom muito mais sóbrio e maníaco do sétimo jogo representou uma mudança tão brusca (por mais que bem-vinda) que Biohazard soou quase como um reboot total da série – se não pela quase completa desconexão com o lore da franquia, ao menos pela proposta de transformar a fantasia de poder da trilogia passada em uma experiência impotente de tensão e medo, mais afim às raízes e virtudes dos jogos originais.
BEM-VINDO A VILLAGE
A oitava entrada da série, Resident Evil: Village, continua a história iniciada pelo jogo anterior. A narrativa acompanha Ethan Winters, um sujeito ordinário e sem habilidades especiais que em nada lembra o capoeirista Leon Scott Kennedy ou o socador de pedras Chris Redfield. Dando continuidade às liberdades poéticas e temáticas instaladas pelo jogo anterior, Village está menos preocupado em contar a história de Winters ou amarrar pontas soltas do que em realizar um novo experimento a partir das bases construídas em Biohazard. Como um cientista maluco debruçado sobre funis de vidro e tubos de ensaio, a Capcom dá vida a um monstro de Frankenstein ao abandonar o terror rural e boa parte do que havia funcionado antes para focar suas lentes em criaturas do folclore popular – sobretudo romenas –, como vampiros e lobisomens (cuja existência é mais uma vez justificada a poucos minutos do final do jogo, como que para garantir que ainda estamos no universo de Resident Evil).
Em termos de narrativa, Village chega para concluir a história de Winters e colocar um ponto-final em sua jornada, mas acrescenta – assim como Biohazard – muito pouco à mitologia da série ou à macronarrativa construída nos jogos anteriores, ou mesmo à história da família Winters de modo geral (que pode ser resumida, os dois jogos somados, a um parágrafo de cinco linhas ou menos).
Mas sejamos honestos: ninguém além do fã mais ardoroso ainda se importa com a história de Resident Evil, que virou um nó de personagens, tramas paralelas e reviravoltas que nem mesmo os desenvolvedores parecem capazes de desatar. Autoconsciente da farofagem que virou a saga, Village manda às favas qualquer compromisso que os jogadores pudessem achar que a série ainda tinha com eles e sem pudor fala de assombrações mitológicas, bonecas assassinas e ciborgues sci-fi com a mesma naturalidade de quem até ontem contava uma história romeriana sobre zumbis e ganância corporativa.
Ao abraçar essa heterogeneidade de formas e conteúdos, porém, Village se afasta do que fez Biohazard tão especial, funcionando mais como um compilado de causos e temáticas do que como a casa dos horrores que foi o sétimo jogo. Em vez de trancafiados com uma família de lunáticos em uma residência enorme, estamos agora relativamente soltos na vila-título para perseguir nossos próprios objetivos, quais sejam: encontrar armas e recursos, desvendar segredos e eventualmente enfrentar chefes espalhados por quatro regiões do mapa a fim de resgatar a família Winters (ou o que sobrou dela).
Ainda que os vilões sejam derrotados em uma sequência específica, e o jogo se mantenha em essência bastante linear, Village é muito mais aberto que seu antecessor, apresentando confrontos com maior frequência e uma galeria consideravelmente mais extensa de inimigos. Esse flerte com o mapa aberto, devo dizer, não chegou a me incomodar, mas me deixou preocupado com a possibilidade de virar namoro no já anunciado Resident Evil: Requiem. Isso porque, ao expandir o cenário (e consequentemente a área de circulação do jogador), Village abre espaço para divagações como encontrar tesouros e caçar animais, diluindo o medo que sentimos durante a exploração.
Acredito que, para que sejam assustadores, jogos de horror/terror devem ir direto ao ponto e evitar devaneios – um caminho felizmente possibilitado pelo caráter opcional dos objetivos secundários de Village. De todo modo, analisando friamente, podemos dizer que, se Biohazard era um conto de terror curto e brutal, Village se aproxima mais do formato caudaloso de um romance gótico, recheado de floreios que não necessariamente o tornam melhor, apenas mais ornamentado.
UM PARQUE TEMÁTICO CHAMADO VILLAGE
Antes de encerrar as comparações com o jogo anterior (pois Village deve ser tratado com a individualidade que merece), preciso dizer que sujei muitas fraldas jogando Biohazard. A família Baker, e em especial seu patriarca, fizeram-me suar frio enquanto eu desvelava os tórridos segredos de sua morada.
Lembro-me de, em certa ocasião, jogando madrugada adentro sob efeito de não poucos psicotrópicos, quase derrubar o controle de minhas mãos trêmulas ao ser descoberto por Jack Baker no segundo andar de sua infame residência. Descarreguei um pente inteiro de pistola em seu rosto e vi os pedaços de músculo exporem o crânio por baixo deles enquanto esse senhor de sotaque sulista avançava incansavelmente contra mim, rindo de minhas tentativas frustradas de derrubá-lo.
O pânico que me tomou naquele momento foi talvez o maior que já senti em um jogo – do tipo que faz cada segundo durar uma hora inteira e sobrevive na memória por muito tempo depois de rolarem os créditos. Quando Jack enfim caiu de joelhos, temporariamente derrubado pela dezena de tiros à queima-roupa que fizeram de sua face um purê vermelho, eu corri sem olhar para trás, empurrando com violência a alavanca do controle para aproveitar os poucos segundos de vantagem que havia colocado entre mim e o irrefreável Sr. Baker.
Ainda que tenha gostado de meu tempo com Village, fato é que o sentimento adrenalístico que tive na mansão Baker, provocado pela constante resposta de luta ou fuga que permeia o jogo, não foi nem de perto replicado com a mesma eficiência neste oitavo capítulo.
Na prática, Village é uma espécie de “melhores momentos” da franquia, funcionando como um pot-pourri de tudo o que fez a série famosa: vilões dramáticos, monstros gigantes e quebra-cabeças obtusos, tudo isso oferecido em uma jornada fotorrealista que mistura em doses equivalentes terror e ação, como se alguém houvesse jogado em um liquidificador a ambientação e as mecânicas de Resident Evil 4 e a propensão ao grotesco de Biohazard, depois temperado com uma pitada de cada outro jogo da franquia antes de bater tudo e servir ao jogador em uma modesta (mas acertada) campanha de oito horas de jogo – curiosamente, metade do tempo que levei para concluir Biohazard (talvez pelo tempo gasto na frequente troca de fraldas).
A decisão de segmentar o jogo em quatro áreas bem definidas causa em Village um efeito Disney World, como se estivéssemos passeando por um parque temático de Resident Evil. À sua direita, uma seção de horror estilo casa mal-assombrada que se inspira diretamente nas seções mais assustadoras de Biohazard. À sua esquerda, um nível repleto de ação que mimetiza as passagens mais explosivas da trilogia passada.
Longe de ser uma abordagem ideal (a meu ver, a naturalidade da transição entre áreas da mansão Baker funcionava muito melhor, mas sei que prometi interromper as comparações), essa segmentação também não é de todo ruim, já que consegue oferecer um pouco de tudo o que os fãs esperam e agradar a todos sem realmente se comprometer com ninguém. E por mais que soe artificial do ponto de vista narrativo, essa divisão em áreas acaba funcionando muito bem na prática, propondo diferentes abordagens e bem-vindas mudanças de cenário que impedem o jogo de se tornar maçante.
Destaco aqui a primeira das quatro “fases” – a seção no Castelo Dimitrescu –, que encapsula com perfeição vários dos tropos, temáticas e maneirismos usados por Resident Evil nessas três décadas, servindo quase como um jogo em miniatura que espelha e celebra as conquistas mais brilhantes da série até hoje. Em um nível que dura cerca de duas horas para ser concluído, Village combina elementos tão clássicos como uma elegante residência nas montanhas, adversários persecutórios, mapas labirínticos, passagens secretas, puzzles à Scooby-Doo e uma saudável variedade de inimigos, culminando em um chefe que poderia facilmente estar no final de qualquer jogo da franquia.
É uma pena que esta acabe sendo também a parte mais interessante e elaborada do jogo, já que as fases seguintes são relativamente lineares e muito mais curtas. Minha preferida, que se passa na Casa Beneviento – cercada pela aura residual do playable teaser de Silent Hills –, é talvez a mais simples e breve de todas, mas também a mais assustadora, funcionando perfeitamente para injetar uma dose de horror nas veias de quem esperava um jogo tão sinistro quanto o anterior.
E se o terceiro nível é o mais genérico dos quatro, colocando-nos em uma região pantanosa para enfrentar uma baixa variedade de inimigos e resolver enigmas inconvenientes, a quarta e última área mostra que a Capcom está realmente empenhada em fazer experimentações com a série. Ao propor um cenário fabril que evoca os piores pesadelos do gênero cyberpunk, Village chuta o balde e se envereda de vez para a ficção científica, incluindo em seu já diverso bestiário ciborgues assassinos produzidos em massa.
VILLAGE PEOPLE
Muito do que funciona em Resident Evil: Village deve-se diretamente à direção de arte do jogo e à composição dos cenários, recriados com fidelidade gráfica pelo processo de fotogrametria – que se utiliza do escaneamento de objetos reais para reproduzir elementos em três dimensões. A iluminação e os gráficos fotorrealistas de Village são primorosos, e o trabalho na construção dos ambientes pode muito bem ser um dos melhores da década.
Ao caminhar pela vila, o próprio cenário nos conta uma infinidade de pequenas histórias que ajudam a despertar o medo. Na entrada da vila, moscas pousam no olho aberto de um cavalo morto. Comida podre e restos de uma vida recém-vivida se aglomeram e confundem no interior das casinhas de madeira, sugerindo a fuga apressada dos moradores. De uma árvore ressequida pende a cabeça negra de um bode, e de longe nos chega o uivo de um lobisomem que espreita sobre o telhado.
Também os habitantes do vilarejo (isto é, aqueles que não querem nos trucidar) são interessantes o bastante para que nos preocupemos com eles. Infelizmente, aparecem pouco e servem apenas para oferecer novas mortes em tela, já que no fim das contas acabamos sempre sozinhos em nossa sofrida missão de resgate.
Vale mencionar aqui o Duque, um comerciante tão misterioso quanto amigável, que surge em pontos específicos do mapa e vez por outra nos auxilia batendo um papo sincero, por mais que críptico. Trata-se de um personagem sem grande participação narrativa, mas que ajuda a construir a estranheza que se espera de uma vila romena infestada por lobisomens.
Aliás, um dos aspectos que mais me atraiu em Village, do ponto de vista estético, foi a constante alusão a rituais heréticos e subversões religiosas, que muito combina com a ideia que fazemos da Romênia na cultura pop. Em um casebre no centro da vila, podemos encontrar um círculo de velas ao redor de uma pintura cercada de runas no chão. Do lado de fora, uma bruxa portando um cetro de caveiras humanas sopra frases enigmáticas ao vento, corcunda e incompreensível. Em um refúgio à beira de um milharal habitado por espantalhos, os camponeses sobreviventes se agrupam em volta de uma mesa e orando em uníssono dão as mãos em uma prece inútil, logo antes que a morte chegue para todos eles.
É uma pena que esse aspecto da religiosidade, do sacrilégio e da heresia não seja aprofundado para além do apelo estético, uma vez que Village se resume, como todos os jogos da franquia Resident Evil, a uma questão pseudocientífica sobre armas biológicas e vírus capazes de transformar seres humanos em quaisquer monstros desejados pela equipe de desenvolvimento. Particularmente, eu gostaria de ver esse lado folk horror sendo mais explorado em um jogo com as mesmas assombrosas qualidades técnicas de Village, mesmo reconhecendo a improbabilidade de um produto assim me chegar às mãos em um futuro próximo.
E porque falamos em mãos, não posso deixar de comentar a importância destas em prol do sangrento entretenimento de Village. Sabemos que, em um jogo em primeira pessoa, as mãos são o aspecto fisicamente mais importante para gerar conexão com o jogador. É por meio delas que vemos nosso herói abrindo portas, lançando granadas ou se protegendo do ataque inimigo. Partindo desse princípio, Village transforma as mãos de Ethan quase em personagens à parte. Elas sofrem tantos danos – de dedos mastigados a amputações completas – que acabam recebendo mais destaque que o próprio protagonista.
Ainda que o excesso de cortes, perfurações e ferimentos diversos pareça exagerado em vários momentos, nunca deixa de ser divertido (apesar ou justamente por conta do exagero) assistir às mãos de Ethan sendo gradualmente destruídas ao longo do jogo. É o mesmo tipo de prazer visual simultaneamente nojento e engraçado que sentimos ao ver as tripas de um adolescente escorrerem de sua barriga aberta em um filme de terror.
E porque falamos também em filmes de terror, igualmente não posso deixar de comentar o prazer que foi descobrir tantas homenagens a estes durante a campanha de Village, muito bem servida em termos de referências e easter-eggs.
Se Biohazard fazia clara homenagem a obras como A Morte do Demônio, O Massacre da Serra Elétrica, A Bruxa de Blair e Jogos Mortais, o oitavo jogo da série nos brinda com referências claras aos filmes A Hora do Pesadelo (verificar as garras de Lady Dimitrescu), O Chamado (em algum lugar há um poço na escuridão…), O Bebê de Rosemary (conferir a bebezinha de Ethan) e até mesmo A Noiva de Chucky, que claramente inspirou o visual de certa personagem.
OBRIGADO E VOLTE SEMPRE
Ainda que não seja o melhor Resident Evil (e afinal, qual seria?), Village merece ser reconhecido pelo que é: um jogo gostoso, daqueles que não queremos parar de jogar até chegar ao fim. O fato de não ser tão assustador quanto seu irmão mais velho pode ser decepcionante, mas a crocância de sua gunplay e os altos padrões técnicos e artísticos são o bastante para criar uma experiência satisfatória que incentiva a rejogabilidade. E o fato de ser um jogo curto, em uma época na qual os games são celebrados por durarem centenas de horas, apenas potencializa todas as qualidades de Village, tornando-o uma grata surpresa mesmo para aqueles que, como eu, esperavam uma experiência mais dirigida ao horror do que ao tiroteio.
No fim do dia, fica a saudade da família Baker, mas também o alívio de saber que a série Resident Evil está longe de se sentir acomodada. Quem dera desenvolvedoras tão grandes quanto a Capcom tivessem sempre a mesma iniciativa. Quem dera todo jogo fosse um monstro tão singular quanto Village.