“Neve que me embala como um berço divino,
Neve da minha dor, neve do meu destino!
E eu aqui a chorar nesta noite tão fria!
Agonia, agonia, agonia, agonia!”
Augusto dos Anjos
Estou morrendo. Depois de 57 dias de bem-sucedida sobrevivência, fui atacado por um urso pardo e deixado para sangrar até a morte. Minhas roupas estão rasgadas e tenho mais lacerações do que posso contar. Mal consigo me lembrar como foi que consegui me arrastar da neve vermelha para dentro deste casebre, feito de um teto miserável e quatro paredes caindo aos pedaços (mas ainda assim em melhor estado que eu). Enquanto agonizo neste quarto escuro à espera do fim, dezenas de horas campanha adentro, resta a meu favor apenas 10% da barra de vida que o urso não conseguiu arrancar de mim, mas assim como a minha sorte ela diminui a cada minuto. Lutando para clarear o raciocínio, descosturo as cortinas penduradas na janela e com o tecido fabrico ataduras que uso para conter a hemorragia. No entanto, mesmo enfaixado dos pés à cabeça, qual um faraó mumificado em vida, corro ainda o risco – sinalizado pelo menu do jogo – de ser acometido por uma grave infecção que pode, a qualquer momento, me encomendar para os braços da morte certa.
Para prevenir esse destino horrível, esvazio meia garrafa de antisséptico sobre os muitos ferimentos que tenho e me deito para descansar (de acordo com o jogo, preciso de pelo menos 10 horas de repouso para me recuperar). Mas, porque desgraça pouca é bobagem, The Long Dark não faz cerimônia para dificultar ainda mais minha já precária situação: aparentemente, estou sofrendo também de uma condição chamada “enclausuramento” (ou cabin fever), que me impede de dormir em lugares fechados. Um beco sem saída, já que não posso dormir ao relento no estado em que me encontro, arriscando ser novamente atacado pelo urso ou congelar até a morte na noite invernal.
Assim, sou obrigado a me sentar no escuro, quase morto, cheio de curativos e sem comida enquanto atravesso a noite em claro, sem saber se verei outra vez a luz do dia, ocasionalmente acendendo a lamparina que levo comigo apenas para ter certeza de que não há nada ou ninguém me observando da escuridão. De vez em quando abro a mochila e fico olhando para o revólver em meu inventário, imaginando seu toque frio em minha têmpora. Havendo opções, eu escolheria uma morte rápida.
A madrugada avança a passos de tartaruga. Sem nada a fazer além de esperar, começo a refletir sobre meu apego a este personagem sem nome que criei para mim. Em The Long Dark, nosso avatar é apenas isto: um avatar. Uma folha em branco que devemos preencher com nossas próprias ambições, desejos e realizações a fim de justificar o eterno ciclo de dor e recompensa proposto pelo jogo. Cada corrida é única e completamente diferente da anterior. Vivemos da melhor forma que conseguimos e, quando morremos, morremos para sempre – e mesmo que uma recente atualização agora permita ressuscitar seu personagem até três vezes depois de morrer, as penalidades são tantas que dificilmente vale a pena aceitar essa oferta, compensando mais (na maioria das vezes) iniciar uma nova campanha.
Durante dezenas de horas, construímos nosso personagem com cautela, sobrevivendo a incontáveis eventos de quase morte. Aprendemos com nossos erros (ou assim deveria ser), lemos livros para aperfeiçoar nossas técnicas e, quando menos percebemos, somos peritos em pesca no gelo ou sobrevivência a céu aberto ou na rústica culinária do fim do mundo. Construímos nossa base com zelo, estocamos comida e desenvolvemos novas habilidades, pensando que talvez, apenas talvez, possamos sobreviver indefinidamente, até o dia em que morremos de bobeira porque não tratamos uma infecção ou pegamos a curva errada em direção aos dentes de uma alcateia.
Trata-se de um investimento de alto risco, cheio de tédio e longas horas de lenta, lenta caminhada pelos escombros da civilização – mas também de uma intensa aventura com muitos picos de adrenalina. E quando enfim morremos, o trauma é equivalente ao tempo que gastamos para chegar até ali, de modo que as mais bem-sucedidas campanhas terminam inevitavelmente das formas mais dolorosas.
Quase uma hora depois, sou retirado de minhas divagações pelo brilho fraco do Sol que se levanta por trás da janela. Para minha grata surpresa, ainda estou vivo. Agarro com as unhas e dentes que me sobraram a chance de pelo menos tentar lutar por minha sobrevivência, e tão logo posso abandono a falsa segurança do casebre que me salvou a vida e me aventuro pela estrada à frente, em busca não sei bem do quê, ocasionalmente parando para tirar um cochilo dentro dos carros estacionados pelo caminho. O risco de infecção desaparece após algumas horas de sono, mas ainda preciso desesperadamente de comida. Até que, perto do meio-dia, a sorte sorri para mim. Ao longe, uma massa escura e disforme captura meu olhar, tombada no gelo como se fosse uma pedra feita de pelagem marrom. Uma miragem? Chego mais perto para conferir, desconfiado de qualquer ato de bondade que esse mundo queira me oferecer. E qual não é meu espanto ao constatar, chegando mais perto, que se trata do mesmo urso que um dia antes quase encerrou minha campanha, agora devidamente morto e estatelado no gelo.
Ao que parece – e como se confirma por uma posterior pesquisa em fóruns do jogo –, The Long Dark é tão realista (apesar de seu visual cartunesco) que os animais eventualmente sangram até a morte se você conseguir machucá-los. Lembro-me de disparar contra a cabeça do urso e ver o sangue jorrando logo antes de ser trucidado por ele, um disparo certeiro, e agora me vejo diante de 37 kg de carne à disposição, o maior banquete de todos os tempos.
Usando uma faca de caça, despedaço o urso e passo o restante do dia assando bifes em uma cabana, protegido do vento e do frio e de todos os perigos que ainda me aguardam do lado de fora, com mais comida à disposição do que conseguiria comer em uma semana. Enquanto forro meu estômago, percebo que, ironicamente, o mesmo urso que quase me matou também foi responsável por salvar minha vida. Tive sorte de encontrá-lo – houvesse contornado a estrada pela floresta, jamais encontraria seu cadáver, e provavelmente a essa altura já estaria morto de fome. É preciso cautela, porém: se não for armazenada em condições apropriadas, a carne apodrece rapidamente. Portanto, para evitar perder todo esse estoque, vale aqui a Regra de Ouro Número 3: use a neve para congelar seus alimentos, largando-os no chão fora de casa a fim de usar a temperatura ambiente (sempre abaixo de zero) para preservá-los por muito mais tempo.
Os dias vêm e vão. Quando a carne de urso acaba, dez dias depois, sou obrigado a partir em busca de recursos. Em minha lenta, lenta viagem para o oeste, exploro cavernas inóspitas, sobrevivo à natureza selvagem e saqueio cidades abandonadas. Não há mais eletricidade, não pelo menos desde o incidente que derrubou meu avião – um grande pulso eletromagnético provocado por uma explosão solar ou, quem sabe, pela explosão de dezenas de bombas atômicas (como sugere o trailer do próximo jogo). Estou sempre faminto, sempre cansado, sempre a um passo de fazer a escolha errada e morrer outra vez, e a possibilidade de voltar à estaca zero nunca deixa de congelar minha espinha.
Como uma velha amiga – talvez a única que tenho –, a ferrovia me conduz através da ilha, por entre florestas esparsas de álamos e bétulas congelados. Em mais de uma ocasião vejo surgir no mapa o ícone de um puma, e por duas vezes chego a ouvir seus rugidos (um sinal de que estou adentrando o território da fera) antes de dar meia-volta e escolher outra direção. As noites voam, mas os dias são de uma lentidão corcunda. Com 93 dias de sobrevivência nas costas, em uma enseada sombria pela qual navego meu corpo cansado, descubro uma forma de produzir munição (uma habilidade ímpar neste mundo perdido). Dias se passam enquanto produzo cartuchos e balas em uma forja, sobrevivendo da carne dos lobos que vivem ao redor do armazém e realizando um grande esforço para não começar a ficar otimista outra vez.
Às vezes jogo cartas para passar o tempo. Em dias de nevasca, quando o frio é tanto que sair simplesmente não é uma possibilidade, aproveito para passar um pente-fino no inventário e costurar os rasgos que não param de se abrir em minhas roupas, desfazendo as vestimentas que não prestam mais e usando o que sobra delas para remendar as roupas que ainda prestam. Cada minuto que passo desperto deve ser bem aproveitado; cada ação deve ser cuidadosamente planejada. Pois não se engane pela aparência visual amigável de desenho animado: em The Long Dark é preciso estratégia para sobreviver. Como em um jogo de xadrez, tudo deve ser calculado: o tempo que você leva para se deslocar do ponto A ao ponto B. A quantidade de água que carrega, os itens de que precisa, cada possível mudança brusca na temperatura. Deixe de prestar atenção em algo (como no estado de suas roupas ou em seu nível de vitamina C) e em breve The Long Dark se ocupará de castigar sua negligência.
Uma semana se passa e atinjo a marca dos campeões: estou vivo há cem dias, mais do que jamais esperei. Sinto que deveria comemorar de alguma maneira, é verdade – talvez abrindo aquela lata de energético ou quem sabe cozinhando algumas panquecas –, mas um pensamento me paralisa: existe mesmo algo a ser comemorado? Rabisco uma anotação em meu diário para que a data não passe batido, uma centena de dias vividos, e isso é o melhor que consigo fazer.
Dias depois, quando já tenho balas suficientes, decido enfim que é hora de seguir meu rumo, e com 40 cartuchos de calibre 38 no bolso eu abandono a enseada para retornar à linha do trem. De mochila nas costas, carregando apenas 150 gramas a menos do que o limite de minhas capacidade de carga, avanço a passos módicos pela ferrovia, pisoteando os dormentes e admirando a paisagem inóspita. Caminho rumo ao oeste, sempre ao oeste, o único plano que ainda faz sentido em uma jornada carente de propósitos além da sobrevivência per se, e começo a me perguntar se não estou de repente superestimando essa necessidade toda de permanecer vivo.
Afinal, vale a pena se matar todos os dias apenas para sobreviver um dia após o outro, sem a perspectiva de que em algum momento poderei descansar? Sabendo que minha eterna luta ficará cada vez mais e mais difícil, que este mundo se tornará cada dia mais frio e cinzento, até que eu cometa um erro e desapareça na noite fria com centenas de dias acumulados nas costas? Ou seria a morte o único descanso possível neste mundo que se recusa a oferecer conforto? Perguntas que martelam minha cabeça e, se eu deixar, retiram de mim todo o desejo de continuar jogando – e, consequentemente, de manter vivo este meu personagem.
Durante o dia, mergulho na floresta ao redor para caçar coelhos (ou seriam lebres?) e recolher um pouco de lenha, apenas o suficiente para acender uma pequena fogueira onde cozinhar o almoço. Já é noite quando reencontro os trilhos e sigo meu rumo pela linha férrea, de vez em quando me detendo para decifrar os uivos que sobem a distância. Aqui, vale a Regra de Ouro Número 4: estique os ouvidos e fique atento sempre que um lobo uivar. Se outros lobos responderem, é possível triangular a posição da alcateia e, com um misto de sorte e habilidade, evitar uma cilada.
Com o céu estrelado sobre minha cabeça, caminhando contra o vento, me descubro pensando que uma das melhores qualidades de The Long Dark é a dicotomia que o jogo propõe entre a segurança claustrofóbica dos espaços fechados, sempre escuros e em más condições, e a ameaçadora amplitude dos espaços abertos, tão belos quanto mortais. Caminhar assim à noite, debaixo do firmamento, é como se abraçar ao perigo – mas também uma das melhores experiências possibilitadas pelo jogo. Afinal, a trilha sonora e os visuais compõem uma atmosfera sem paralelo, tornando The Long Dark o jogo mais imersivo que já tive o prazer (e também a aflição) de experimentar.
Enquanto caminho, buscando sempre o próximo lugar onde repousar, observo meu medidor de energia descer vertiginosamente. Estou ficando cansado, sempre cada vez mais cansado, de modo que preciso aliviar minha carga para conseguir me locomover com o mínimo de agilidade. Assim, como quem caminha pelas veredas que desembocam em Santiago da Compostela, vejo-me obrigado a dispensar tudo aquilo de que não preciso pelo trajeto, colocando em prática a Regra de Ouro Número 5: viaje leve. Afinal, nenhum bem é precioso demais para ser descartado quando necessário.
É sempre difícil decidir o que iremos deixar para trás. Será que preciso mesmo de cinco litros de água, ou apenas três seriam suficientes? Devo carregar tantos sinalizadores comigo, ou é melhor dispensá-los em um armário que provavelmente nunca mais verei? Em minhas andanças, vou largando pelo trilho do trem tudo aquilo que me pesa mais do que beneficia: uma frigideira velha, um par de gravetos, alguns pedaços de pano. Uma lupa que supostamente serve para acender fogueiras a céu aberto, mas que nunca cheguei a testar para saber se funciona realmente. Com a dedicação de quem sobreviveu por mais de cem dias inteiros, obrigo-me a seguir sempre em frente, em direção ao futuro, um andarilho em moto-perpétuo. Atrás de mim não há nada além de um passado cada vez mais distante, apenas uma infinidade de cabanas vazias em cujas portas eu registro um X com spray laranja após esvaziá-las, para saber que não há nada lá dentro se algum dia voltar a encontrá-las.
O tempo corre. Encontro meu primeiro rifle no 111° dia, a melhor arma do jogo, e no dia seguinte derrubo meu segundo urso. No porão de um chalé confortável, utilizo o couro e as vísceras do urso abatido para fabricar uma roupa capaz de me proteger da maioria das feras, e agora me sinto um verdadeiro sobrevivente. Aos poucos, a vida encontra seu caminho. Até que, depois de muita peregrinação, após 164 dias de suor e sangue, sou finalmente levado para o extremo do mundo, em algum momento chegando aos Territórios Distantes – um conjunto de três ainda-mais-perigosos mapas oferecidos pelo DLC de mesmo nome. O primeiro território é composto por uma grande planície onde descansa uma pista de pouso abandonada. Mas, apesar da bela vista, tenho a impressão de que não há muito a se fazer por aqui. Permaneço na área por apenas dois ou três dias, saqueando a pista de pouso e os prédios adjacentes, antes de jogar a mochila nos ombros e me colocar em movimento outra vez.
Avançando para o segundo mapa, já quase no extremo da ilha, sou levado a uma antiga área de mineração onde toneladas de dejetos químicos oferecem um risco extra à exploração, e de uma hora para outra minha vontade de permanecer vivo é novamente colocada em xeque. É aqui, nesta zona contaminada, onde a ferrovia (minha fiel companheira durante toda esta longa jornada) enfim termina, soterrada pelos dejetos radioativos que infectam o cenário.
Além dos riscos de contaminação oferecidos pelo ambiente, não é possível caçar aqui. Há muitos e ferozes lobos, sim, mas todos estão irremediavelmente contaminados pela radiação, de modo que não posso me alimentar deles, sob o risco de cair duro no momento seguinte.
Os prédios ao redor são vastos, como gigantescos caixões em forma de labirinto. Levo dias explorando cada canto, buscando recursos, sobrevivendo de latas de pêssego vencidas e barrinhas de cereal que encontro no fundo de uma centena de armários. E quando os alimentos na superfície se esgotam, minha atenção se volta para o subsolo. Por dias inteiros permaneço imerso na escuridão das minas, no fundo da terra, fugindo dos lobos e da radiação e da fome que me perseguem no mundo acima. Dos túneis labirínticos das minas escavo tudo o que posso para sobreviver: remédios, munição, combustível, um par de botas especiais contra contaminação química. Uso meu saco de dormir para descansar no chão duro das minas, e os cabos de suspensão de um elevador desativado para me deslocar entre os três diferentes andares subterrâneos.
Quando decido partir, quase duas semanas depois de chegar (e já não encontrando recursos suficientes para me manter vivo), percebo que tenho agora uma importante escolha a fazer. Posso voltar por onde vim, para todas aquelas cidades saqueadas que deixei para trás, ou seguir em frente – para além da ferrovia até a borda do mundo conhecido, rumo ao terceiro e último território deste DLC, onde a ilha de Grande Urso aparentemente acaba. Voltar agora aumentaria minhas chances de sobrevivência, mas a oportunidade de chegar à borda do mapa é atraente demais para que eu a descarte agora, estando assim tão perto de concluir minha missão original – percorrer horizontalmente todo o mapa do jogo.
Tomando a decisão mais arriscada desta campanha, decido seguir em frente. Para acessar este último território, porém, é necessário navegar por uma extensa rede de cavernas subterrâneas que, verdade seja dita, é a maior rede de cavernas subterrâneas de todo o jogo, sendo tão fácil se perder nelas quanto seria na vida real. Aqui entra a Regra de Ouro Número 6: mantenha-se colado à parede para não se perder em cavernas. Mesmo se chegar a um ponto sem saída, percorra toda a extensão da parede e continue seguindo por ela. Em algum momento, você encontrará a saída.
Tentando escapar desse intrincado labirinto de pedra, percorro as cavernas pelo que parece ser uma eternidade. Em meu caminho desbravo túneis estreitos e enormes galerias de gelo, e até mesmo uma complicada escalada com corda que drena boa parte das minhas energias. As cavernas são escuras, feitas do breu mais negro que se possa imaginar, e mesmo aumentando o brilho do monitor ao máximo eu não consigo enxergar quase nada. Para me deslocar com o mínimo de visibilidade, preciso de fontes de luz constante, mas elas se esgotam rapidamente.
30 minutos depois, estou acendendo meu último sinalizador. Estarei morto se ele parar de queimar antes que eu encontre a saída. Nesta escuridão, ficarei batendo a esmo contra as paredes do cenário até morrer de sede ou fome, um destino infeliz. De quando em vez ouço um barulho – é a morte batendo à porta. E quando tudo parece perdido, faltando pouco mais do que alguns minutos para ser engolido pela escuridão, vejo enfim uma luz no fim deste túnel gelado que é minha existência, e um sorriso quase se abre na musculatura tensa desse meu rosto exausto.
Dez passos depois sou cuspido pela caverna em uma região inóspita, um desfiladeiro fendido rodeado de montanhas íngremes. O vento fere meu rosto e um pop-up escala a tela, sinalizando que ganhei um troféu por percorrer o mapa de The Long Dark de leste a oeste – um prêmio que nem imaginei existir, mas que calha perfeitamente com o objetivo que imputei a mim mesmo. Por um segundo e nada mais, sinto algo parecido com a realização.
Esse sentimento agradável não dura muito, no entanto, sendo logo soterrado pela avalanche da realidade. Depois de todo esse tempo perdido nas cavernas, meus medidores indicam que estou morrendo de fome e de sede. Investigo os arredores, usando um pedaço de carvão para desenhar o que vejo em um mapa rústico (em The Long Dark, a única forma de ter acesso a um mapa é desenhando um você mesmo). Como esperado, estou no extremo oeste da ilha. Ao que parece, não há mais para onde ir depois daqui. Ao que parece, este será meu destino final.
Venta demais para acender uma fogueira. Não conheço o território, e tudo o que faço é caminhar às cegas. Percorro a encosta nevada por quase duas horas, a temperatura caindo quanto mais alto eu subo, e começo a me perguntar se existe algo aqui além de neve e montanhas. Mesmo assim continuo subindo, pois sei que morrerei se voltar agora – retornar pelas cavernas, com os poucos recursos que tenho, não é de fato uma opção.
A hipotermia em breve dá as caras, acompanhando a fome e a sede que se esforçam para me matar, e agora sou praticamente um cadáver ambulante. A nevasca prejudica a visibilidade e, como nada é tão ruim que não possa piorar, sou também atacado por um lobo que me surpreende em um breve momento de distração, acrescentando uma hemorragia à minha lista de preocupações imediatas. Minha vida está abaixo de 25% quando alcanço o impassível e absurdamente gelado cume da montanha. Lá, no topo inóspito deste mundo falido, tudo o que encontro é uma espécie de observatório em ruínas, último ponto de acesso possível para um viajante desgraçado como eu.
Guiado por um instinto de sobrevivência que não chego a compreender muito bem, ponho-me a vasculhar o observatório atrás de qualquer parafuso que me ajude a sobreviver. Encontro roupas em um armário e utilizo o tecido para fabricar ataduras, contendo a hemorragia. Pelo menos sei que não vou sangrar até a morte. Sobreviverei pelas próximas horas, sim, mas qualquer coisa além disso é uma grande incógnita. Talvez este seja o encerramento ideal, no fim das contas: cheguei ao topo do mundo, encontrei meu destino e cumpri a missão autoimposta de atravessar todo o extenso mapa de The Long Dark, um pé depois do outro. Percorri a ilha de Grande Urso e os Territórios Distantes de ponta a ponta, saqueando e sobrevivendo como pude, e este pode bem ser meu último dia de jogo. Todos morremos um dia, afinal, e está tudo bem com isso. Ninguém quer mesmo viver para sempre, certo?
A boa notícia é que encontrei uma câmera fotográfica dentro do observatório, a única que pode ser encontrada em toda a ilha. Sempre gostei de fotografar paisagens. Se pudesse ter sido algo além de escritor e sobrevivencialista, certamente eu haveria de ser um fotógrafo, capturando belos retratos da natureza selvagem. O Sol está se pondo quando me sento do lado de fora sobre uma pedra, à beira de um desfiladeiro. Observo meus medidores caírem lentamente enquanto penso na vida que levei e na morte que se aproxima. Fome, sede, cansaço. Problemas que se acumulam em uma das experiências mais ricas e estressantes que já tive dentro de um videogame. Quando anoitecer, vou esticar meu saco de dormir no canto mais escuro do observatório e me deitar para dormir, quem sabe pela última vez. Antes, porém, quero ver o pôr do sol. Preciso fotografá-lo, nem que seja a última coisa que eu faça nesta longa campanha de 193 dias. Talvez este seja realmente o fim, mas a vista que tenho… é a mais bela de todas.