As noites eram de um frio cegante e negras como caixão e o longo raiar da manhã trazia um silêncio terrível. Como a aurora antes de uma batalha.
Cormac McCarthy
O Sol está se pondo no horizonte. Depois de quase 60 horas de jogo dedicadas a uma única campanha, sinto que cumpri minha missão. Ao longo de 193 dias in-game, caminhei de leste a oeste por todo o extenso território de The Long Dark, cruzando quase uma dezena de mapas muito distintos entre si mas igualmente bucólicos e mortais. Em minha travessia, fui atacado por um urso, contemplei auroras fantasmagóricas e quase morri de hipotermia em mais ocasiões do que consigo me lembrar. Pela primeira vez desde que comecei esta aventura, pouco mais de um mês atrás (o que agora parece uma eternidade), sinto que posso morrer em paz.
Verdade seja dita: nunca esperei realmente concluir meu plano de chegar ao extremo oeste do mapa. Era apenas um objetivo autoimposto para dar sentido à minha jornada e me motivar a seguir jogando. Durante todos esses dias de caminhada, cansaço e reflexão, jamais deixei de supor que a morte me alcançaria a qualquer momento, livrando-me de minha danação.
Mas a morte não veio. Em vez disso, perseverei e lutei e sobrevivi até chegar aqui, ao topo gelado desta montanha no último território acessível da ilha de Grande Urso, e finalmente percebo que não tenho mais aonde ir. O que farei agora? A falta de propósito, eu sempre soube, é a mais perigosa ameaça em um mundo que nos incentiva todos os dias a desistir. O pôr do sol me deixa melancólico e começo a pensar em me jogar daqui de cima. O atalho final: uma última demonstração genuína de independência sobre meu destino antes de morrer congelado nas próximas horas, um item a mais na coleção de cadáveres que adorna a paisagem de The Long Dark.
Mas quando o Sol enfim mergulha entre as nuvens, desaparecendo rosáceo no horizonte, e a noite se instala acima de minha cabeça como a negra mortalha sobre o rosto de um planeta defunto, redescubro em mim a vontade de insistir no erro. De perseverar e sobreviver, mesmo reconhecendo a inevitabilidade do fim. Mais do que nunca, é o que quero dizer, estou disposto a sobreviver até amanhã. Meu inventário, por outro lado, discorda de mim: tenho muito pouco de útil além de uma lata vazia, uma caixa de fósforos pela metade e as roupas que trago no corpo.
Riscando os palitos de fósforo que me sobraram, vasculho o observatório construído no alto desta montanha gelada. Encontro uma garrafa de água sobre a mesa, um sinalizador dentro do armário, um pacote de ração militar escondido em uma gaveta – tudo de que preciso para sobreviver mais um pouco. Talvez, apenas talvez, seja o suficiente para refazer o trajeto até minha última base. Talvez, apenas talvez, eu seja capaz de atrasar os planos da morte.
Depois de me alimentar e beber a pouca água que resta, estico meu saco de dormir em um cantinho do observatório e descanso profundamente. As horas avançam a passos largos na tela escura diante de mim. Na manhã seguinte, levanto apressado para aproveitar a luz do dia e poucos minutos depois estou dando início ao longo caminho de volta para casa, rumo ao abrigo que me serviu de base três mapas atrás. Quase me permito sorrir ao perceber que tenho novamente um objetivo ao qual me agarrar.
Atravessando a rede de cavernas que conecta os Territórios Distantes, mantenho-me colado à parede para não me perder no interior labiríntico da montanha, até eventualmente encontrar a saída de volta para a zona contaminada. Os lobos infectados e as poças de lixo radioativo me recebem como velhos amigos, e acima de mim o céu azul me contempla, infinito e indiferente, enquanto prossigo em minha lenta caminhada por este mundo esvaziado de ternura, sonhando com a lareira fumegante que me espera a dezenas de quilômetros em um futuro ainda distante.
Poucas horas depois, no entanto, sou pego em uma nevasca forte. A noite cai e de uma hora para outra não consigo enxergar um palmo à frente. O vento frio derruba minha temperatura e então me lembro da Regra de Ouro Número 7: nunca cruze uma nevasca se tiver qualquer outra opção. A melhor alternativa é sempre encontrar um canto protegido do vento (como atrás de uma parede ou pedra grande o suficiente) e acender uma fogueira para ficar aquecido até o clima se estabilizar.
Buscando proteção, aninho meu corpo e os 20 quilos de carga que levo comigo contra um paredão congelado. Após duas tentativas fracassadas, é uma grata surpresa quando a pederneira por fim decide funcionar e uma fagulha resplandece no interior da fogueira. O fogo sobe no ar, quente e acolhedor, e uma fina coluna de fumaça se ergue na noite. Lanço para dentro da fogueira alguns quilos de lenha, o suficiente para mantê-la acesa até o amanhecer, e fico ali sentado observando o medidor de minha temperatura corporal subir.
Agora, tudo o que preciso fazer é tirar um cochilo para repor as energias. Quando acordar de manhã, a nevasca terá passado e poderei seguir meu caminho. Mas então descubro que deixei meu saco de dormir no observatório – uma sentença de morte que fere sobremaneira a Regra de Ouro Número 8 (talvez a mais importante de todas): jamais se separe de seu saco de dormir. Se não tiver como pregar o olho, seu personagem ficará cada vez mais fraco e lento e vulnerável até que encontre um lugar para capotar. É normal perder o saco de dormir no começo do jogo, sim. Mas a esta altura? Um erro de principiante, incompreensível para quem, como eu, sobreviveu por tanto tempo. Terei sido condenado por minha própria distração? No fim, são as pequenas coisas que acabam com a gente.
O observatório está há meio dia de distância, de modo que não há como resgatar o saco de dormir sem congelar ou morrer de fome no caminho. Também não posso atravessar a nevasca: sem enxergar para onde vou, corro o risco de andar em círculos e me perder no negrume da noite. Logo percebo que minha única opção é permanecer aqui, encolhido contra a parede fria, para me manter aquecido – e torcer para que a nevasca termine antes de a fogueira se apagar.
A fogueira se apaga duas horas antes de amanhecer, contrariando meus planos, e não tenho recursos para reacendê-la. Já a nevasca segue firme e forte em sua intenção de acabar comigo. É isto: vou congelar em menos de uma hora. Vinte minutos se passam. Trinta. Quarenta. Estou quase morto quando me lembro de que posso, usando gravetos e pedaços de pano, construir um abrigo na neve – recurso que jamais utilizei, mas que se faz mais necessário que nunca –, e logo estou recolhendo os itens exigidos para construí-lo. Demoro dez minutos para encontrar os gravetos de que preciso, e agora só me faltam os pedaços de pano. Mas onde encontrar tecido em uma floresta?
Em uma jogada potencialmente suicida, rasgo várias das peças de roupa que estou usando (meias, calças térmicas e camisas) a fim de conseguir cinco retalhos que façam as vezes de pano. O jogo me informa de que estou prestes a sofrer geladura – condição irremediável em que a pele e demais tecidos do corpo congelam e eventualmente necrosam. Já quase desmaiando por conta do cansaço e da hipotermia, fabrico enfim meu abrigo na neve e corro para me esconder lá dentro. O mundo se apaga por um instante e, quando amanhece outra vez, descubro-me parcialmente recuperado. O Sol brilha impassível e amarelo acima das montanhas, um olho dourado que a tudo assiste sem se importar com nada. À minha esquerda, um círculo de urubus se agita no céu, sinalizando a presença de uma carcaça abaixo – boas notícias para quem, como eu, está definhando de fome. Inexplicavelmente ainda estou vivo. Inexplicavelmente me esquivei outra vez da morte. E assim, tão grato quanto surpreso, lanço a velha mochila sobre as costas e sigo em minha viagem por The Long Dark, carregando nos ombros todo o peso desta tênue sobrevivência que me impede de descansar.
Refazendo meu caminho ao longo dos mapas, mas agora no sentido inverso, utilizo novamente a linha do trem – velha companheira de guerra – para me guiar pela ilha de Grande Urso. No trajeto, encontro pequenos presentes que nem lembrava de ter deixado para mim mesmo. Garrafas de água, latas de comida fora da validade, roupas, pedaços de carvão e utensílios diversos estão dispostos sobre os trilhos a cada cinco ou seis quilômetros – objetos que, em minha jornada para o oeste, precisei despachar a fim de não ficar sobrecarregado, e que agora me ajudam a sobreviver em meu retorno para o leste.
Enquanto caminho, me pego refletindo sobre toda a experiência que tive com The Long Dark nesses últimos meses. Por mais que se trate de um jogo de queima lenta, posso dizer que jamais me senti entediado enquanto jogava. É verdade que não nos é oferecido muito em termos de narrativa ou objetivos de longo prazo, mas isso jamais será um problema para quem seguir a Regra de Ouro Número 9: crie sua própria motivação. Para aproveitar The Long Dark da maneira como ele merece ser aproveitado, é necessária uma boa dose de role-playing, que permita ao jogador não apenas controlar, mas ser o personagem que está na tela. Em vez de se irritar com a lentidão do deslocamento, por exemplo, aumente o volume nos fones de ouvido e ouça o canto distante dos pássaros. Sinta o frio da neve que se acumula em seu casaco, a resistência que o vento oferece à caminhada. Não pense nisto como um jogo, e sim como uma experiência, e The Long Dark vai parecer muito mais emocionante mesmo quando não há nada acontecendo.
Três ou quatro dias de caminhada depois, alcanço meu velho abrigo na ferrovia quebrada: uma espaçosa casa de dois andares em um espaço elevado entre as montanhas, onde a presença de ursos e lobos garante um estoque de comida constante. Quando menos percebo, estou completando 200 dias de sobrevivência, um inesperado marco que jamais pensei ser capaz de atingir. O tempo avança a passos lentos depois disso, enquanto permaneço ali pelos próximos dias, semanas ou meses (já não faço questão de verificar o calendário), vivendo do que a natureza gentilmente oferece mas também de tudo o que consigo arrancar dela à força.
Para me manter ocupado e produtivo, estabeleço pequenas missões diárias, como caçar e cozinhar, coletar recursos, costurar novas roupas, organizar o inventário e consertar transmissores espalhados pela ilha. De vez em quando me comunico com um sujeito pelo rádio, um comerciante com quem faço trocas mas que vive isolado em um barco ancorado na costa, de modo que nunca o conheci nem conhecerei pessoalmente. E quando me vejo com tempo livre nas mãos, em dias de Sol e tranquilidade e falta do que fazer, saio por aí com minha câmera fotografando as manifestações da vida selvagem ao meu redor, passatempo que por um instante me faz lembrar do que existe de bom neste mundo.
Mas a questão é que, em algum momento, sou inevitavelmente acometido pela falta de propósito. Por melhor que seja a experiência proposta por The Long Dark, não existe jogo que não se torne repetitivo quando jogado em demasia. E bem sei que joguei demasiadamente esta maravilha – chegando a seis ou sete horas por dia nos dias de maior inspiração. Agora, contudo, sinto-me exaurido e desinspirado, e tudo em que consigo pensar é na trilogia de artigos que me propus a escrever para o Antropogamer, e que ainda aguarda uma conclusão. Inicialmente, achei que morreria em qualquer ponto da costa em minha jornada para o oeste, e poderia finalizar o último texto falando justamente sobre isso: sobre como a morte me encontrou trágica e inesperadamente enquanto eu tentava seguir viagem. No entanto, todos os meus planos deram certo no fim, e a morte ainda não apareceu para me buscar (ou, antes disso, foi várias vezes enxotada por minha obsessão em permanecer vivo). Mas todos merecemos morrer um dia, certo?
Enquanto jogava, muitas vezes me peguei pensando que The Long Dark funciona, de muitas formas, como uma versão interativa do livro A Estrada, de Cormac McCarthy – aquele mesmo que citei na resenha de The Last of Us. Ambas as histórias tratam de personagens atravessando cenários desolados enquanto lutam para sobreviver ao frio e à fome e à escassez de recursos, coletando tudo o que podem para sobreviver ainda que não exista muito mais a ser coletado.
No livro, a esposa do protagonista enfrenta uma depressão profunda durante os primeiros anos após o apocalipse. Até que, certa noite, preferindo morrer de uma vez do que viver uma vida de sofrimento, ela abandona o filho e o marido para se embrenhar na noite fria, desaparecendo para sempre na escuridão.
Com o passar dos dias, à medida que me sinto cada vez menos e menos motivado a fazer o que quer que seja além de dormir ou me sentar em frente à lareira observando o fogo, a imagem da esposa de A Estrada (interpretada no cinema por Charlize Theron) insiste em retornar à minha cabeça – e começo a pensar que a mulher tinha mesmo razão. Talvez seja necessário saber quando aceitar nosso próprio destino. Talvez seja preciso saber quando encerrar a viagem.
A noite chega. Preparo uma última refeição, nem melhor nem pior do que qualquer outra que costumo fazer, e organizo meus pertences no guarda-roupa. Meu rifle de caça, perfeitamente limpo e lubrificado. Meu revólver, irmão de longa data. A munição que produzi com tanto sacrifício, meu arco e minhas flechas, os 20 litros de água potável que poderiam muito bem me manter hidratado pelas próximas duas semanas. Depois removo todas as minhas roupas – o casaco de pele de urso, as várias camisas, o cachecol, o gorro de lã e as luvas, as calças e até mesmo as meias que tantas vezes remendei – e as deixo dobradas ao lado da cama, imaginando a possibilidade de serem encontradas por alguém mesmo sabendo que jamais serão. Não preciso mais disso. Não preciso de nada. Guardo em um baú minha câmera fotográfica, preciosa polaroide do fim dos tempos, e abandono qualquer pensamento de angústia ou ansiedade que ainda reste em mim. Estou vazio. Estou calmo. Estou pronto.
Vestindo cuecas e nada mais, escapo pela porta da frente e caminho sem pressa em direção à noite gelada. A Lua se esconde por trás das nuvens. Não há estrelas no céu. Uma nevasca que se intensifica a cada minuto lança flocos de neve em um turbilhão à minha volta e de repente me lembro do poema de Dylan Thomas: “não se entregue gentilmente àquela boa noite”. Ora essa, por que não? Sou incapaz de enxergar mais do que um metro à frente, mas isso não é de fato um problema. Meu medidor de temperatura despenca como se eu houvesse caído em um lago gelado e lobos uivam nas proximidades – primeiro à frente, depois à direita e então à esquerda, e logo me dou conta de que estou cercado.
A nevasca varre o mundo e com firmeza caminho para dentro dela. Nu, sem medo, liberto. O vento estala ao meu redor e os uivos se aproximam cada vez mais. Foi uma bela jornada. Mais do que qualquer outro jogo antes, The Long Dark fez com que eu me sentisse realmente imerso em outro universo, como se vivenciasse em primeira mão tudo aquilo que acontecia na tela – e não tenho dúvida de que o estúdio Hinterland criou uma obra-prima dos jogos de sobrevivência. Mas em algum ponto todos temos que nos lembrar da Regra de Ouro Número 10: saiba aceitar seu próprio fim. Morrer faz parte da vida e não há nada de errado com isso: todos precisamos descansar em algum momento.
Posso sentir a matilha farejando no escuro, salivando em meus calcanhares. O cerco se fecha na escuridão. Quando os lobos finalmente atacam, mordendo e dilacerando e disputando entre si os melhores e mais suculentos pedaços de mim, sou tomado por uma prazerosa sensação de dever cumprido. Desmembrado e repartido em vários pedaços na madrugada, servindo de alimento para os animais que por tanto tempo me alimentaram, sinto que fechei o ciclo e posso agora morrer tranquilo, tendo enfim uma conclusão digna para o especial que me propus a escrever. Pode não ser um final feliz, mas é o final que escolhi para mim. E satisfeito por encerrar minha agência neste mundo de gelo e sangue, desapareço por fim para sempre na longa noite, entre uivos ferozes e gritos de dor que o vento logo se ocupa em soprar para longe.