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Análise Vanquish

Vanquish e o zeitgeist de uma geração

Um controverso jogo de hominho.

Enquanto certas obras são atemporais, outras acabam (para o bem ou para o mal) sendo muito representativas da época em que foram gestadas. Como se engarrafando um espírito passageiro, esses trabalhos capturam a essência de uma geração – inclusive de uma geração de consoles – e a imortalizam através do tempo, servindo como janela para que receptores contemporâneos possam vislumbrar as qualidades, mas também as fraquezas, de uma era que já ficou para trás.

E esse é precisamente o caso de Vanquish, jogo de tiro em terceira pessoa dirigido pelo lendário Shingi Mikami, e tão enraizado em sua época de lançamento que tudo nele, do game design à paleta de cores, transpira as características de um modelo de produção típico da primeira década dos anos 2000. Temos aqui um sistema de cobertura (consagrado por jogos do mesmo período como Gears of War e Uncharted), uma tonalidade essencialmente amarronzada e cinzenta (do mesmo tipo que parece ter dominado a maioria dos jogos da sétima geração) e uma estrutura sucintamente linear que me deixa saudoso dos tempos em que os jogos não duravam mais que uma boa dezena de horas.

Sam Gideon

BOM VANQUISH

Vanquish não foi um sucesso comercial, passando sob o radar de muitos jogadores nos primeiros anos pós-lançamento. Parecia-se, talvez, com um jogo por demais genérico, como que disposto a surfar na onda de outros shooters de maior orçamento – uma definição que, é claro, não poderia ser mais equivocada. Apesar das amplas características que compartilha com jogos do mesmo período, Vanquish é uma criatura única, e que mesmo hoje carece de paralelos na indústria. 

Misturando tiroteios frenéticos com uma lógica hack and slash, o jogo subverte as expectativas ao permitir múltiplas abordagens em sua gameplay (ao contrário de atiradores tradicionais da mesma época). É possível, e até mais fácil, encarar a experiência como um cover shooter tradicional, buscando proteção nas muitas coberturas que encontramos pelo cenário enquanto atiramos a distância até vencer os inimigos. Ou podemos jogar do jeito mais arriscado, mas também muito mais divertido, aproveitando-nos da mobilidade do protagonista para nos manter em constante movimento, ainda que nos expondo a maiores riscos.

Review Vanquish

É na velocidade de deslocamento oferecida pelo traje do protagonista que o jogo realmente brilha, permitindo-nos deslizar de joelhos em alta velocidade pela arena de combate e entrar, a qualquer momento e com o toque de um botão, em uma supercâmera lenta para despachar os vilões com mais precisão e estilo. Mas há um revés: o traje de Sam Gideon (que muito lembra as roupas futuristas do filme G.I. Joe) superaquece com relativa facilidade, obrigando o jogador a usar seus recursos com parcimônia para não acabar desprotegido e exposto em meio aos tiroteios.

Essa camada estratégica, que incentiva o jogador a combinar a proteção das coberturas com uma mobilidade frenética, é justamente o que destaca Vanquish de outros jogos similares. Mais do que nos forçar a buscar proteção atrás de uma parede, atirando e recarregando e repetindo, Vanquish espera que o jogador desafie a si mesmo e tome a frente do combate, impelindo-se como uma arma ambulante pelo cenário.

Análise Vanquish

Mesmo passados 15 anos desde seu lançamento, Vanquish consegue, como poucos videogames antes e depois, imprimir uma fantástica sensação de tatilidade em sua gameplay. Das armas aos inimigos, passando por todas as mecânicas envolvendo a ludocinética do jogo, tudo parece feito para entrar em algum tipo de violento contato físico: seja explodindo uma granada em pleno ar ou desferindo pontapés cinematográficos em um robô assassino.

Do começo ao fim, Vanquish é um grande playground (segmentado em corredores estreitos e largas arenas) que não apenas deixa o jogador livre para escolher sua própria abordagem, como o incentiva constantemente a aprimorar suas táticas e conquistar pontuações melhores (contabilizadas em uma tela de ranking ao final de cada capítulo). Trata-se, evidentemente, de um jogo pensado para ser jogado múltiplas vezes – o que eu de fato fiz, ao longo de três gerações de consoles.

Vanquish review

A primeira vez em que concluí a campanha de Vanquish foi no PS3. Lembro-me de ter suado sangue para vencer alguns combates, em especial aquele contra o duplo chefe final. Anos depois, joguei a versão remasterizada em 4K no PS4, e agora finalizei a mesma versão no PS5. E devo dizer que os comandos do jogo (em especial a mira e a movimentação pelo cenário) parecem muito melhor calibrados no DualSense do que em qualquer controle que eu tenha usado antes – com infame destaque para o DualShock 3, cujas alavancas direcionais pareciam molengas e pouco responsivas quando comparadas às versões posteriores do console da Sony.

MAU VANQUISH

Apesar de tudo aquilo que faz muito bem, sendo ainda hoje um baita jogaço de tiro e ação, Vanquish traz consigo uma bagagem da qual, felizmente, os jogos buscam hoje se libertar. Temos aqui, para começo de conversa, uma narrativa rasa como mar de cuspe e personagens tão tridimensionais quanto uma panqueca. Até aí, claro, podemos concordar que o enredo está perfeitamente alinhado à proposta do jogo, que nunca finge querer ser mais do que puro entretenimento descompromissado. Mas o tratamento dado aos personagens e diálogos, bem como a condução do enredo de modo geral (repleto de explosões e frases de efeito), ganha por vezes contornos tão exagerados e testosterônicos que muito aproxima a história de um shōnen como Dragon Ball, ou mesmo das brincadeiras que eu engendrava com meus bonecos de ação ao cinco anos de idade – o que não é nenhum elogio.

Análise Vanquish

Sei que muita gente vai torcer o nariz e discordar de mim quando cito o exagero de Vanquish como um defeito, e não como uma qualidade. É uma questão de gosto, afinal. Mas acredito que histórias de ação realmente boas são capazes de equilibrar os momentos badass de que todos gostamos com pelo menos algum nível de seriedade. É a diferença, por exemplo, entre uma obra-prima como Mad Max: Estrada da Fúria e uma bobajada qualquer como Velozes e Furiosos. Novamente, porém, eu entendo: é uma questão de gosto.

O que não é (nem deveria ser) encarado como preferência pessoal, entretanto, é a maneira debiloide com que as figuras femininas são retratadas no jogo. Existem, para falar a verdade, apenas duas mulheres na história: Elena Ivanova, assistente e woman in chair de Sam Gideon; e a presidente dos Estados Unidos, Elizabeth Winters. Elena é uma ótima personagem, servindo para manter o jogador informado sobre os principais acontecimentos durante a campanha e para supervisionar as funções do traje do protagonista, como faria o mordomo eletrônico do Homem de Ferro. O problema está na manjada objetificação da Srta. Ivanova, evidenciada pela minissaia apertada e pelos incisivos ângulos de câmera que insistem em “filmá-la” de baixo para cima, como se provocando o jogador a espiar sua calcinha.

Elena Ivanova, Vanquish

Como um homem cisgênero e heterossexual, não nego o prazer de apreciar as qualidades do corpo feminino. Isso não quer dizer que concorde, ou sequer ache agradável, ver uma personagem sendo retratada de maneira imbecilizada na mídia. Para mim, o vestuário de Elena, tanto quanto os closes em suas pernas expostas, soam mais como punhetagem dos desenvolvedores do que como sensualidade – como a visão distorcida de um adolescente espinhento sobre como deveria ser a mulher “ideal”. Trata-se de uma visão reducionista e, não vamos dourar a pílula, bastante porca da figura feminina, retratada ao mesmo tempo com luxúria e subserviência.

Por outro lado, Vanquish parece, à primeira vista, ganhar pontos pelo fato de inserir uma personagem feminina como a presidente dos Estados Unidos. Um aceno minimamente progressista, quem sabe? Mas a verdade é que qualquer boa intenção que tivesse o roteiro (se é que tinha alguma) escorre pelo ralo quando a presidente Winters comete suicídio ao fim do jogo. Mais uma vez, a câmera não nos poupa dos detalhes: em vez de optar pela subjetividade, deixando-nos preencher as lacunas, o jogo insiste em fazer um zoom out da cabeça baleada da presidente, um buraco sangrento vazando vermelho de sua têmpora. Assim, temos em uma mão Elena, retratada quase como uma boneca inflável em sua minissaia justa; e em outra a presidente Winters, sujeita à violência empregada contra si mesma. A mensagem do jogo parece clara: nesse enredo, não há espaço para mulheres que não sejam coisificadas ou vítimas de violência extrema. Aqui, os homens dominam a situação.

Outro grande problema, a meu ver, é o tom monocórdico do jogo. Ainda que a campanha seja relativamente curta (o que, volto a dizer, é uma grande qualidade que se perdeu nos jogos de alto orçamento da atualidade), Vanquish soa por vezes repetitivo e um tanto arrastado. Há pouca variedade de inimigos, e mesmo os chefes – em sua maioria impressionantes e muito divertidos de combater – acabam se repetindo duas ou mais vezes ao longo do jogo.

Também a narrativa tem pouco a oferecer em termos de variedade, assim como os personagens principais, todos saídos da mesma fôrma e com a voz de quem fuma três carteiras de Marlboro por dia, discutindo e rosnando uns com os outros enquanto competem para ver quem tem mais pigarro. E falando em fumar: temos aqui o protagonista mais nicotinoso de toda a história dos videogames, um cara que simplesmente não consegue ficar de pé ou manter uma conversa de dois segundos sem puxar um cigarrinho de trás da orelha – existe até mesmo um botão dedicado a dar uns tragos, e que ajuda a chamar a atenção dos inimigos para longe quando Sam arremessa a bituca sobre uma cobertura.

Como alguém que tenta há algum tempo largar o cigarro (não fumem, crianças!), é impossível não ver com maus olhos o uso do dito-cujo como peça decorativa na construção do personagem – um acessório para torná-lo mais cool, como se o jogo houvesse saído na era de ouro dos anos 50.

Também as piadinhas de Vanquish (em especial aquelas proferidas pelo próprio protagonista) soam hoje deslocadas e autoindulgentes. Em um trecho da campanha, por exemplo, diante da necessidade de cumprir determinadas tarefas, Sam diz que “isso está começando a se parecer muito com um videogame”. Dã! Chega a ser difícil pensar em piadinha mais barata que essa.

Review Vanquish

GRANDE E VELHO VANQUISH

Tenho certeza de que muitas pessoas vão ler esta resenha (milhares, quiçá dezenas de) e reclamar – para si mesmas ou nos comentários – que fui injusto com o jogo, que defendo pautas progressistas (e é claro que defendo) ou que simplesmente estou tentando encontrar pelo em ovo, reclamando de “banalidades” que pouco importam para o jogador médio que busca apenas um pouco de diversão. E para esses leitores, eu digo: não se contentem com pouco. Não é porque um jogo se propõe a ser apenas entretenimento descerebrado que ele precisa, necessariamente, ter um vilão russo caricato, diálogos pobres e mulheres hiperssexualizadas. É nosso papel enquanto jogadores fazer o possível para elevar a régua, a fim de que os jogos – assim como os filmes e outras mídias – se mantenham em evolução constante, aprendendo com os erros do passado para buscar no futuro soluções melhores.

Tendo um salvador branco como protagonista, quase nenhuma diversidade étnica e doses tóxicas de um machismo arraigado, Vanquish é um reflexo de muito do que havia de errado com a indústria de jogos em décadas passadas. Mas, em questão de jogabilidade e mecânicas, é também uma obra que se provou capaz de sobreviver ao teste do tempo, oferecendo uma combinação única e bastante satisfatória entre gunplay e mobilidade, entre tiroteio e velocidade, empacotando tudo em uma caprichada embalagem audiovisual. Uma joia representativa de seu tempo, sem dúvidas, mas que claramente não encontra mais lugar nos dias de hoje – para o bem e para o mal.

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