O esquadrão de elite que eu comandava desembarcou de uma aeronave no centro do Rio de Janeiro¹. Era apenas outra missão de rotina. Naveguei sorrateiramente meus soldados pelas ruas cariocas, tomadas por xenofobia e tiroteios e carros em chamas como no mundo real. Quando o primeiro inimigo caiu sob o fogo de artilharia do meu pelotão, tive a ilusão de estar no controle. Com mais de 30 horas de campanha, achei que havia dominado XCOM: Enemy Within, a ponto de considerá-lo previsível. Foi meu primeiro erro.
O segundo erro foi espalhar meu esquadrão pelo mapa enquanto tentava flanquear os ETs. Inadvertidamente ativei múltiplos pods – pequenos grupos de inimigos que permanecem ocultos no mapa até serem alertados. Logo eu estava cercado, lidando com um problema muitas vezes maior que minha capacidade de resolvê-lo. De um turno para outro, levei uma rasteira – e não parei de apanhar enquanto estava no chão.
I’VE GOT MY EYES ON
A Maj. Tracy “Gizmo” Walsh, provavelmente a melhor personagem que tenho em minhas fileiras, é a primeira a morrer. O Cap. Thomas “Cowboy” Hall vem na esteira, fuzilado pelas costas por um tanque de guerra com pernas. Tamanha é a carnificina que o Ten. Sergio Lopez entra em pânico e sai correndo para os braços do inimigo sem que ninguém possa incutir nele um mínimo de bom senso. Os soldados remanescentes lutam para se manterem vivos, mas estão fazendo um péssimo trabalho. Erram tiros com 90% de chance de acerto; perdem um turno inteiro recarregando suas armas.
Daqui onde estou, a uma distância segura, ordeno ao pelotão que continue lutando. Não deixaremos a cidade ser tomada. Somos XCOM, eu digo. A elite da elite, última linha de defesa contra a invasão extraterrestre. Então me inclino na cadeira e afundo a cabeça entre as mãos enquanto a máquina faz sua jogada.
EYES PEELED, COMMANDER
Vestida em um traje mecânico de última geração, a Cel. Roberts enfrenta sozinha uma tropa de inimigos cuja barra de vida está longe de chegar ao fim. Em um canto do mapa, Sergio Lopez é encurralado e desaparece sob os punhos enormes de um gorila espacial, afogando-se em uma poça gorgolejante do próprio sangue. Seus colegas poderiam salvá-lo se conseguissem chegar até ele, mas não conseguirão.
Em alerta, escondida atrás do que parece ser um Opala 86 verde-musgo, a Cap. Annette Durand abre fogo contra o inimigo que se aproxima. Ela erra categoricamente um tiro depois do outro, incapaz de acertar um disparo que seja para salvar a própria vida. No canto oposto do cenário, a Ten. Fatima “Casino” é subitamente sequestrada por uma lula robótica flutuante. O inimigo aperta e espreme a Ten. Casino em seus muitos braços de aço sem que eu possa fazer nada para ajudá-la.
Quando a máquina me devolve o controle, esperando minha jogada, sou forçado a pensar em todos os erros que cometi nos últimos vinte minutos de jogo. Mais que isso: nas últimas vinte horas. Está claro agora. Se pudesse, eu faria tudo diferente. Mas não há segunda chance. Tenho que jogar com as peças que me sobraram.
IT’S RAINING DEATH OVER HERE
Em frente às ruínas de um boteco gerado proceduralmente, a Cel. Roberts faz uma escolha desesperada (ou antes, devo dizer, sou eu que desesperado escolho por ela). Com um último suspiro de fria resignação – típico da heroína que é –, Roberts se deixa consumir pela explosão de sua própria granada, tentando mas não conseguindo levar alguns inimigos consigo.
Em vexatória desvantagem numérica, percebo que fui derrotado. A realidade me atinge como um tiro na cara. Minhas chances de sucesso são oficialmente iguais a zero. Com a voz embargada, ordeno à Cap. Durand que ela bata em retirada. Abortar missão, grito pelo comunicador. Corra pela sua vida, mulher!
Uma janela se abre no centro da tela informando que soldados feridos ou incapacitados serão deixados para trás, e me pergunta se tenho certeza de que desejo abortar a missão. Isto é, se tenho certeza de que quero abandonar o que sobrou do meu fiel esquadrão para morrer nas mãos, garras e tentáculos do inimigo. Are you sure, Commander? Sim, eu digo. Tenho certeza. Traga Annette para casa.
SHOT FAILED TO CONNECT
Com um total de cinco oficiais mortos, a missão Forgotten Shield foi um retumbante fracasso. Não apenas pela missão em si, pelo objetivo que falhei miseravelmente em cumprir, mas por todo o impacto que esse fracasso exerceu no resto da minha campanha. Quase todos os bons personagens – com habilidades e estatísticas que levei semanas para lapidar – estavam mortos e enterrados ao longo de um quarteirão no centro do Rio de Janeiro.
Na missão seguinte, fui obrigado a salvar Pequim usando um esquadrão essencialmente formado por soldados estrábicos de baixa patente. Não fiquei surpreso quando metade deles morreu no que deveria ser sua primeira missão. Daí em diante comandei uma tropa de zé-ninguéns, matando os soldados mais rápido do que conseguia recrutá-los.
No quartel-general, luzes vermelhas piscavam de cima a baixo, informando-me dos meus diferentes fracassos. A Argentina abandonou o projeto XCOM depois que escolhi ajudar a China em detrimento dos hermanos. Em seguida, em questão de semanas, sofremos o desfalque também do México, da Alemanha e do Japão, todos igualmente indignados pela minha incompetência para protegê-los. Naves extraterrestres surgiam e desapareciam no radar, rápidas demais para a minha frota de teco-tecos. Meus satélites explodiam em órbita e assim permaneciam, pois eu não tinha cacife para consertá-los.
Assim como na vida real, eu estava sempre sem grana. Gastava a esmola que recebia do governo com itens de primeira necessidade – melhores armas, melhores soldados, melhores naves de perseguição – e nunca tinha o suficiente para avançar na história. Mais de uma vez fui alertado sobre meu péssimo rendimento enquanto Comandante e pretenso salvador da humanidade. Cada pequena derrota se tornou uma grande derrota. Meu jogo descarrilou. Somando quase 40 horas de suor e sangue, a campanha se aproximava vertiginosamente de um fim abrupto. Olhei para o fracasso e o fracasso olhou de volta para mim².
ADJUSTING AIM
XCOM: Enemy Within, desenvolvido pela Firaxis e publicado em 2013 pela 2K, foi recebido com aplausos e fogos de artifício por crítica e público em seu lançamento. Desde então, é justo dizer que a franquia XCOM se tornou a grande referência para os modernos jogos de estratégia em turnos, revigorando o gênero e injetando nele uma generosa dose de adrenalina. Não à toa, XCOM 2 figura entre os mais bem quistos jogos deste que vos escreve, sendo a mídia eletrônica em que mais investi meu tempo até hoje – coisa de 500 horas. Ainda assim, nada me preparou para a brutalidade e falta de gentileza deste Enemy Within, que há anos esperava no meu backlog por sua chance de brilhar. Pois bem.
Temos aqui um jogo implacável e muito menos tolerante a erros do que seus sucessores (XCOM 2 e, principalmente, o passeio no parque XCOM: Chimera Squad). O recado está claro desde a primeira missão: aprenda a gerenciar seu fracasso. O nome do jogo é sacudir a poeira e seguir em frente.
READY TO ENGAGE
Seus melhores homens e mulheres vão morrer porque você foi incapaz de prever corretamente o movimento do oponente. Seu sniper favorito será despedaçado pelo tórax flutuante de um ciborgue alienígena apenas porque você foi negligente ao posicioná-lo no cenário. Seu esquadrão será repetidamente emboscado de maneiras que você sabe que poderia ter evitado. Mesmo assim, você continuará sendo emboscado repetidamente.
Você estará sempre tomando cuidado e sempre se culpando por não tomar cuidado o bastante. Aproxime muito suas unidades e uma granada cairá sobre elas; afaste-as demais e estarão por conta própria. Metade dos recrutas que chegarem à base estarão mortos em uma semana. A expectativa de vida é tão baixa que você não se dará ao trabalho de decorar o nome da outra metade. Não haverá dinheiro para contratar novos personagens, obrigando você a executar missões com três soldados em vez de seis. As nações do mundo pedirão favores e cuspirão na sua cara quando você não puder ajudá-las.
A boa notícia? Quanto mais tempo você passa jogando, maior se torna sua habilidade de contornar o próprio fracasso e seguir adiante, pronto para fracassar outra vez – e quem sabe eventualmente vencer, a despeito de todos os erros que vai cometer até lá. Sem nunca pisar no freio, o jogo segue e você segue atrás dele, tentando acompanhá-lo enquanto as missões se tornam cada vez mais desafiadoras – especialmente se você, assim como eu, deixou seus melhores soldados morrerem no meio da campanha.
HOSTILE PACIFIED
Ao contrário de outros jogos punitivos do mercado, que exigem repetir over and over a mesma fase dezenas de vezes para avançar ou vencer um chefe, XCOM: Enemy Within estala um chicote na bunda do jogador e diz a ele para andar rápido se não quiser ser atropelado. Não existe aprendizado pela repetição aqui. Aliás, não existe repetição. As missões, o território e os inimigos são gerados aleatoriamente. Ninguém jamais cruzará o mesmo mapa duas vezes. Um resultado nunca será exatamente igual a outro.
O que Enemy Within propõe é um aprendizado contínuo por meio dos pequenos (e grandes, e enormes) fracassos que você, como Commander, é constantemente obrigado a manejar. Não sendo possível voltar e tentar de novo, o game força o jogador a encarar seus erros e trabalhar com as consequências de cada decisão ruim que tomou pelo caminho, por piores que sejam. Ou isso, ou aceitar a derrota.
Eventualmente internalizei a proposta de Enemy Within e segui em frente de cabeça erguida, tentando apenas não fracassar demais. Fiz o melhor que pude para segurar as pontas até a rolagem dos créditos. Ajustei as finanças e economizei dinheiro – no jogo, não na vida real. Depois, treinei meus soldados até que se tornassem tão proficientes e bem apessoados quanto aqueles que deixei morrer na Tijuca. Desenvolvi habilidades psiônicas. Cortei fora os membros de um coronel e o transplantei para dentro de um mech fortemente armado. Foram boas semanas de serviço, aquelas. Em uma reviravolta do destino, retomei o controle e cheguei à reta final do jogo. Perdi dois de meus melhores soldados na última missão, mas já não consigo lembrar o nome deles.
XCOM: MISSION ACCOMPLISHED
No fim, apesar de mim mesmo, fui capaz de derrotar o inimigo e salvar o planeta. Entra a cutscene. Uma nave espacial explode no céu e despenca em uma chuva de detritos flamejantes sobre a Terra. Lá embaixo, a humanidade ergue os olhos para presenciar o espetáculo da derrocada alienígena, alheia a todos os sacrifícios feitos para garantir a vitória. É um belo espetáculo, mas a que preço? O projeto XCOM foi menos uma resposta militar à invasão extraterrestre que um moedor de carne para dezenas de jovens recrutas. Minhas mãos estão sujas de sangue³. Uma trilha épica estoura nos fones de ouvido. O jogo me diz que salvei o mundo; que a humanidade venceu a guerra.
Porém, quando os créditos terminam de subir e sou devolvido à tela inicial, tudo em que consigo pensar é nas pessoas com quem fracassei; no grito desafinado dos civis que não pude salvar; no rosto inexpressivo dos combatentes que deixei morrer. No fim do dia, sou o único responsável por todas as vidas que condenei; por cada fracasso que não pude evitar. Mas ei, a humanidade está salva – pelo menos até o próximo jogo.
¹ O controle de missão me informa que estou lutando nas ruas de Paris, São Paulo, Tijuana; mas todas as cidades são iguais, amorfas e compactadas em um amontoado de carros em chamas, prédios procedurais e ruelas que gritam “emboscada”.
² Esta é uma campanha do tipo Ironman, o que significa que todo save sobrescreve o anterior. Aqui, cada escolha é definitiva, impedindo que você carregue um ponto de salvamento anterior para acertar “aquele tiro” ou reviver um personagem. O que passou, passou. Se todos os países abandonarem o projeto, você volta para casa com um redondo game over .
³ Vale notar que suas mãos nunca estão realmente sujas de sangue – afinal, como o bom militar de alto escalão que é, você faz tudo a uma distância segura. Vê os personagens morrendo a distância; os civis sendo engolidos por uma bola de fogo a distância. A verdade é que, como Commander, todos morrerão antes de você: seus soldados, os cientistas, o governo, a humanidade; a tragédia é ver tudo isso acontecendo e saber que a culpa é sua.
2 comentários em “XCOM: Enemy Within e a metodologia do fracasso”
Linda crônica! Eu amo esse jogo de diversas maneiras, lembro que joguei a primeira vez em 2013, e sempre volto a jogar!
Obrigado pela leitura! XCOM é realmente formidável. Foi a série que me ensinou a gostar de jogos por turno.