Homo ludens: o jogo como elemento da cultura

“Sem espírito lúdico, a civilização é impossível.”

Pedra angular no estudo de jogos, Homo ludens: o jogo como elemento da cultura foi publicado pela primeira vez em 1938 pelo meu xará Johan Huizinga, um dos mais importantes historiadores do século XX. Ainda que não verse sobre jogos eletrônicos (afinal, foi escrito décadas antes de qualquer Tennis for two, Pong ou Pac-man), trata-se de um livro fundamental para quem se interessa por game studies e busca conhecer a importância dos jogos para a civilização. E imagino que, se você acompanha o Antropogamer, pode muito bem se enquadrar nesse seleto grupo de interesse.

Longe de querer elaborar um texto de propensões acadêmicas, pretendo antes fazer aqui uma breve apresentação para quem ainda não conhece o trabalho de Huizinga, pincelando os principais temas discutidos na obra e realçando os pontos que mais chamam atenção no volume. Assim, espero inocular o germe da curiosidade em você, amante dos games como eu, para que conheça mais sobre este grande livro – que, apesar de sua enorme importância, tem pouco mais que 200 páginas.

E peço perdão, desde já, pelos eventuais jogos de palavras ao longo do texto. Mas é como dizem: faz parte do jogo.

HOMO LUDENS: NO PRINCÍPIO, HAVIA O JOGO…

Sem perder tempo, já no prefácio Huizinga abre o jogo e nos propõe o que acredita ser uma nomenclatura tão ou mais adequada à espécie humana que o tradicional Homo sapiens (homem que pensa) e o conceitual Homo faber (homem que fabrica): o Homo ludens (homem que joga). Isso porque, segundo o historiador e linguista holandês, “é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve”¹, sendo o fenômeno do jogo mais antigo que a própria cultura.

Tal afirmação se explica pelo fato de que o jogo está presente até mesmo no mundo animal, o que Huizinga demonstra utilizando o exemplo de dois cachorros brincando, uma atividade ordinária que encapsula os principais elementos do jogo humano. Há entre os cães um ritual de atitudes e gestos que convidam à brincadeira; regras implícitas (que, nesse caso, os proíbem tacitamente de se machucar); e principalmente o prazer e a diversão que tiram desse arranca-rabo simulado – em suma, todos os elementos que compõem a tradição do jogo.

Huizinga traz ainda outros exemplos de jogos e brincadeiras na natureza, como a dança executada por faisões silvestres, as competições de voo realizadas pelos corvos, os ornamentos elaborados por aves do paraíso para enfeitar seus ninhos e o canto melodioso das aves canoras, concluindo que as disputas e exibições, enquanto fatores de divertimento (humano e animal), precedem a cultura.

“A concepção que apresentamos nas páginas que se seguem é que a cultura surge sob a forma de jogo, que ela é, desde seus primeiros passos, como que ‘jogada’. Mesmo as atividades que visam à satisfação imediata das necessidades vitais, como por exemplo a caça, tendem a assumir nas sociedades primitivas uma forma lúdica. A vida social reveste-se de formas suprabiológicas, que lhe conferem uma dignidade superior sob a forma de jogo, e é através deste último que a sociedade exprime sua interpretação da vida e do mundo.” (p. 53).

Sendo o jogo um fator cultural da vida, portanto, é natural considerar que as principais atividades sociais da humanidade, desde seus primórdios, sejam inteiramente marcadas por ele. Exemplo disso é a linguagem, primeiro degrau na escalada da evolução humana, fundamentalmente um conjunto de regras em que as palavras são utilizadas como peões em um jogo de tabuleiro linguístico.

A própria poesia, nesse sentido, serve para demonstrar o alto nível de ludicidade alcançado pela linguagem, havendo em Homo ludens dois capítulos inteiros dedicados a essa expressão artística tão intrínseca ao desenvolvimento da cultura humana. Para Huizinga, a poesia “nasceu durante o jogo e enquanto jogo” (p. 136), estando originalmente associada, antes de representar um desejo estético, ao ato ritualístico de expressão religiosa das civilizações primitivas. Aqui, Huizinga associa suas definições de jogo (sobre as quais falaremos adiante) à criação poética, afirmando que as mesmas regras e limitações espaço-temporais aplicadas ao jogo, assim como a atmosfera de arrebatamento e entusiasmo em que este se desenvolve, podem ser aplicadas à poesia. Como prova desse paralelo, o autor ressalta a ordenação rítmica e simétrica, o subtexto, a rima e a construção das frases que se organizam em um círculo mágico para promover um jogo com as palavras e a linguagem.

“Os elementos formais da poesia são numerosos e variados: estruturas métricas e estróficas, rima, ritmo, assonância, aliteração, acentuação etc., e formas como o lírico, o dramático e o épico. Por mais variados que possam ser esses fatores, mesmo assim eles se encontram em toda parte do mundo. […] Esse denominador comum a que se deve a surpreendente uniformidade e limitação dos modos de expressão poética em todas as épocas da sociedade humana talvez possa ser encontrado no fato de a função criadora a que chamamos poesia ter suas raízes numa função ainda mais primordial do que a própria cultura, a saber, o jogo.” (p. 147).

Para quem se interessa por estudos semânticos e etimológicos, o capítulo 2, intitulado A noção de jogo e sua expressão na linguagem, é uma ótima oportunidade para ingressar em uma visita guiada pelos labirínticos meandros da língua. Avaliando diferentes códigos idiomáticos – do grego ao alemão, do hebraico ao japonês –, Huizinga dedica uma boa porção de páginas (talvez até demais, se você me perguntar) para nos ajudar a entender melhor o que está em jogo na linguagem de diferentes culturas.

O JOGO E SUA (IN)DEFINIÇÃO

Muito se tem discutido ao longo das décadas, e ainda mais desde a invenção dos jogos eletrônicos, sobre o que caracteriza um jogo como tal – assunto que abordei brevemente ao tratar do jogo-poema A memoir blue. Diferentes autores oferecem diferentes leituras e definições sobre o conceito de jogo, muitas das quais podem se mostrar defasadas ou excessivamente restritivas de acordo com o objeto analisado. E é curioso que mesmo Huizinga, em uma época preliminar aos videogames, pareça se debater com a necessidade de delinear as regras desse jogo conceitual ao definir a palavra “jogo”.

Em distintos momentos ao longo do livro, o autor busca recuperar, ressaltar ou reafirmar sua conceituação de jogo, por vezes destacando aspectos que julga importantes à compreensão de determinado tema em um capítulo específico, por vezes ampliando o escopo de sua própria definição.

De início, Huizinga delineia o jogo em torno de três características fundamentais. A primeira delas seria o fato de ser uma atividade livre, ou seja, espontânea e voluntária, desprendida de obrigações formais e, por isso mesmo, supérflua, já que “só se torna uma necessidade urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade” (p. 11). A segunda característica seria o fato de que o jogo é uma evasão da vida real em prol de uma atividade temporária, consistindo a satisfação do jogador na própria realização do ato de jogar, sendo o jogo, nesse sentido, um “intervalo em nossa vida cotidiana” (p. 12). Já a terceira característica primordial seria a delimitação do tempo e do espaço em que decorre o jogo, o que o separa da vida comum tanto pelo local quanto pela duração que ocupa fora do mundo real.

Poucas páginas adiante, porém, já demonstrando um inabalável jogo de cintura, Huizinga expande consideravelmente os termos de sua própria definição, afirmando que o jogo não é apenas uma prática voluntária e exterior à vida cotidiana, como também “uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras” (p. 16). Na mesma página, Huizinga pondera ainda que o jogo promove a formação de grupos que tendem a se rodear de segredos e a destacar sua diferença em relação ao restante das pessoas por meio de “disfarces ou outros meios semelhantes”. A essa descrição, o autor acrescenta, no início do capítulo 2, também o critério essencial de que o jogo, como tal, deve ser acompanhado de “um sentimento de tensão e de alegria”.

É digno de nota o esforço de Huizinga para reforçar, sustentar e ao mesmo tempo expandir seu próprio conceito de jogo ao longo de todo o livro, vez por outra pontuando definições ligeiramente mais precisas que as anteriores; ligeiramente mais completas e assertivas. Como toda obra que se pretende fazer um recorte ou análise histórica, fica evidente que o Homo ludens de Huizinga está suscetível a obsolescências e defasagens em determinados aspectos, mas nem por isso suas definições de jogo se tornam menos ricas e esclarecedoras.

Destaco, para encerrar este tópico, o que parece ser a derradeira tentativa do historiador para retocar e arrematar sua ideia sobre a noção de jogo, já próximo ao fim do livro:

“[…] para que uma atividade possa ser considerada um jogo, é necessário algo mais do que limitações e regras. Dissemos que todo jogo é limitado no tempo, não tem contato com qualquer realidade exterior a si mesmo e contém seu fim em sua própria realização. Caracteriza-se, além disso, pela consciência de se tratar de uma atividade agradável, que proporciona um relaxamento das tensões da vida cotidiana.” (p. 226).

Saliento aqui o último acréscimo feito por Huizinga em sua definição, quando afirma que o jogo deve aliviar a tensão da vida cotidiana. O que pensaria ele dos modernos jogos de terror em realidade virtual e alta resolução? Certamente Huizinga seria obrigado a rever seus conceitos se fosse apresentado à família de Resident Evil 7 ou aos perturbadores cenários de Amnesia. Isso sem falar no já consagrado gerador de ansiedade Outlast, um jogo funcionalmente mais laxante que relaxante.

O JOGO E A COMPETIÇÃO COMO FUNÇÕES CULTURAIS

Ao abordar o papel do jogo nas civilizações seculares, Huizinga faz apontamentos interessantíssimos sobre a influência do caráter combativo da humanidade – chamado por ele de agonístico, termo derivado do grego agón, do qual descende nossa “agonia” em português (ALBORNOZ, 2009) – na formação das comunidades ancestrais. Ele cita, por exemplo, a hierarquia social surgida na China Antiga (uma das primeiras civilizações da humanidade) a partir de competições primitivas entre as tribos, para as quais “todas as atividades assumiam a forma de uma competição ritual: atravessar um rio, escalar uma montanha, cortar árvores ou colher flores” (p. 63). O prestígio que os combatentes adquiriram ao longo dessas competições (que tinham tanto um predicado festivo quanto sagrado) deu origem a um processo de feudalização que se manteve por séculos no território chinês. Desse modo, o espírito competitivo principiado por torneios de danças e canções desenvolveu-se ao ponto de conduzir à formação de instituições políticas e, em seu devido tempo, ao próprio Estado. De certa forma, conclui Huizinga, a civilização será sempre uma espécie de jogo governada por determinadas regras, “e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo” (p. 234).

Outra menção curiosa é aquela que se refere aos diversos povos que associam o jogo de dados às práticas religiosas (que, por sua vez, são o cerne de qualquer civilização), como ocorre na mitologia germânica, segundo a qual tanto a criação quanto o fim do mundo estariam associados a um jogo de dados jogado pelos deuses. De modo semelhante, o épico indiano Mahabharata afirma que o universo foi concebido como um jogo de dados.

Entretanto, de todas as curiosidades citadas por Huizinga quanto às tradições agonísticas de povos antigos, a que mais chama atenção é o costume do potlatch, uma cerimônia praticada entre tribos indígenas da América do Norte. A solenidade consiste em uma grande festa durante a qual um grupo oferece a outro, com muita pompa e circunstância, uma suntuosa quantidade de bens (roupas, alimentos, riquezas materiais) com o único intuito de demonstrar sua superioridade. Já o grupo que recebeu os donativos fica obrigado a virar o jogo organizando uma nova festa, em determinado período de tempo, para oferecer ao grupo adversário uma quantidade igualmente generosa (ou ainda maior, se possível) de presentes e doações. Servem de pretexto ao potlatch acontecimentos de importância variada: desde o nascimento ou morte de um membro do clã até a celebração de um casamento ou cerimônia de tatuagem.

O processo de doação do potlatch é cíclico, garantindo que os bens circulem constantemente entre os grupos, em uma espécie de “guerra do bem” que muito me fez lembrar aquele episódio de Hermes e Renato em que dois sujeitos perseguem um ao outro agradecendo-se mútua e violentamente, ambos tentando provar que são mais educados que seu oponente. Ao se desfazer de seus bens materiais, o grupo que oferece o potlatch declara sua superioridade ao renegar as próprias posses, mas também obriga o grupo rival a oferecer um potlatch ainda mais grandioso, sob o risco de ter arruinado seu nome, sua honra e mesmo seus direitos civis e religiosos caso não cumpra com as expectativas. Em casos mais extremos, a renúncia pode ser tão enérgica que os grupos chegam mesmo a destruir os bens em sua posse, apenas para provar que podem ficar sem eles.

“A ação assume sempre a forma de uma competição: se um chefe quebra um pote de cobre, ou queima uma pilha de mantas, ou estraçalha uma canoa, seu adversário fica na obrigação de destruir pelo menos o mesmo, e se possível mais. Os destroços são enviados ao rival, como provocação, ou exibidos como sinal de honra. Conta-se dos Tlinkit, tribo aparentada aos Kwakiutl, que quando um chefe queria defrontar um rival, matava um certo número de seus escravos, e o outro, para vingar-se, tinha que matar um número ainda maior dos seus.” (p. 67).

Pensando melhor, talvez o potlatch seja como qualquer outra disputa de egos – apenas um jogo sujo e sem vencedores. Mas não deixa de ser uma curiosa e muito anticapitalista demonstração de poder, oposta de muitas maneiras à leitura que geralmente fazemos do conceito de disputa na sociedade contemporânea. Tyler Durden aprovaria.

INFLUÊNCIAS ONTEM E HOJE

Homo ludens transcendeu sua importância acadêmica e literária para ser refletido em diversos movimentos históricos ao longo das oito décadas desde seu lançamento. Entre os muitos impactos que exerceu em diferentes esferas da cultura, o livro de Huizinga influenciou sobremaneira a Internacional Situacionista, liderada por Guy Debord, segundo a qual a automatização da produção e a socialização dos bens vitais iriam gradativamente reduzir a necessidade de trabalho, dando enfim “completa liberdade ao homem” (LIMA, 2012, p. 169). A Internacional Situacionista acreditava que, com menos trabalho, novas necessidades de lazer surgiriam, assim como uma gama de novos comportamentos, criando uma noção inédita de hábitat coletivo propícia ao surgimento e à vivência do verdadeiro Homo ludens. E vale dizer, a título de curiosidade, que o grupo Situacional Letrista (igualmente integrado por Debord) publicava uma revista chamada Potlatch, o que me parece uma clara homenagem ao livro de nosso amigo Huizinga.

Também o escritor surrealista André Breton teceu elogios ao Homo ludens, chamando atenção para o fato de que “o movimento surrealista foi em grande parte motivado pela paixão pelo jogo” (ANDREOTTI, 2002 apud RODRIGUEZ, 2006). Mas creio que uma das influências mais palpáveis do trabalho de Huizinga para nós, atualmente – sobremaneira para os gamers –, possa ser vista no trabalho do lendário desenvolvedor de jogos Hideo Kojima, em especial em seu Death Stranding, de 2019. A própria declaração de missão da Kojima Productions assume abertamente seu vínculo com o trabalho do autor holandês:

“Para compartilhar nossas experiências mais valiosas, criamos histórias, inventamos ferramentas e desenvolvemos a arte de jogar. O jogo tem sido nosso aliado desde os primórdios da civilização. ‘Jogar’ não é simplesmente um passatempo, é a base primordial da imaginação e da criação. Verdade seja dita, os Homo ludens (Aqueles que jogam) são simultaneamente Homo faber (Aqueles que criam). Mesmo que a Terra fosse despojada de vida e reduzida a um deserto árido, nossa imaginação e desejo de criar perseverariam para além da sobrevivência, proporcionando esperança de que as flores pudessem um dia florescer novamente. Através da invenção do jogo, nossa nova evolução aguarda.

Kojima Productions – Nós somos Homo ludens. Nós somos aqueles que jogam.”

Daria para escrever um artigo inteiro unicamente para associar o conceito de Homo ludens ao fascinante e mal compreendido Death Stranding (primeiro game da Kojima Productions e, aliás, um dos meus jogos favoritos da oitava geração), mas parece que alguém passou na minha frente e fez um vídeo bastante completo destrinchando esse e outros aspectos da produção de Hideo Kojima, ao qual você pode assistir abaixo.

CONCLUSÕES

Caminhando para o final da obra, Huizinga traça um perspicaz (ainda que resumido) panorama do jogo desde a Roma Antiga até a modernidade, a fim de discutir sua influência sobre as civilizações ao longo da história. Em um trecho que certamente abrirá um sorriso até no mais sorumbático leitor, Huizinga (que devia estar de bom humor quando se sentou para escrever) detém-se por algumas divertidas páginas para fazer troça das perucas usadas nos séculos XVII e XVIII, chamando-as de “um dos exemplos mais flagrantes da intervenção do elemento lúdico na cultura” (p. 206). A leitura dessas páginas é impagável e vale por si só o preço do livro – ainda mais se você, como eu, recorrer a um bom sebo.

No capítulo que encerra a obra, O elemento lúdico da cultura contemporânea, Huizinga se debruça sobre o que era, 80 anos atrás, a “atualidade”, analisando as transformações e deformações sofridas na concepção de jogo nos tempos modernos. Ao contrário do que muitos poderiam imaginar, Huizinga rejeita com um revirar de olhos a suposição de que os esportes sejam (tanto na década de 30 quanto hoje, por extensão) o maior símbolo do elemento lúdico em nossa sociedade. Para ele, independentemente de sua importância para praticantes e espectadores, os esportes abdicaram de sua ludicidade ao priorizar a organização técnica e a complexidade científica em detrimento de qualquer atividade culturalmente criadora, perdendo assim seu caráter ritualístico e sacramental. Os esportes, na visão de Huizinga, seriam menos um jogo que um serviço. E mais: o autor coloca nesse balaio também os jogos não atléticos e baseados em cálculo, como os jogos de cartas e o xadrez.

Mas, então, o que sobraria do fator lúdico na contemporaneidade de Huizinga?

Para o autor, a técnica, a publicidade e a propaganda seriam as grandes forças responsáveis por promover o espírito de competição na sociedade, “oferecendo em escala nunca igualada os meios necessários para satisfazê-lo” (p. 222). Adotando uma visão que considero bastante pessimista, Huizinga defende que a ludicidade residiria, à época em que publicou o livro, prioritariamente na competição comercial e na política (a qual define como um “jogo de azar”), concluindo ser mais difícil definir o elemento lúdico da arte contemporânea que o do comércio.

“Cada vez mais fortemente se nos impõe a triste conclusão de que o elemento lúdico da cultura se encontra em decadência desde o século XVIII, época em que florescia plenamente. O autêntico jogo desapareceu da civilização atual, e mesmo onde ele parece ainda estar presente trata-se de um falso jogo, de modo tal que se torna cada vez mais difícil dizer onde acaba o jogo e começa o não jogo.” (p. 229).

Só consigo imaginar quantos frutíferos pensamentos teria Huizinga para compartilhar conosco hoje, em uma época na qual os jogos ganham cada vez mais espaço e importância na sociedade – especialmente os jogos eletrônicos. O que teria esse senhor a dizer a respeito dos games utilizados como veículo filosófico, da violência culturalmente herdada de certas produções ou até mesmo sobre inacreditáveis expressões de aniquilamento da individualidade humana como as lives de NPC?

FIM DE JOGO

Pode não parecer à primeira vista, mas a leitura de Homo ludens é, mais do que agradável, bastante fluida. Sem nunca esconder o jogo, Huizinga se apropria de um tom didático que permite a qualquer pessoa, por mais leiga que seja, acompanhar com tranquilidade as discussões propostas. Além disso, os (curtos) capítulos do livro se dividem por tópicos, facilitando a organização temática da leitura. Cada capítulo, em geral, explora a relação do jogo com um tema ou campo específicos da atividade humana, como o direito, a guerra, a filosofia e as diversas formas de arte, a exemplo da música e da dança – tendo cada um desses aspectos culturais seu próprio conjunto de regras, espaços de funcionamento e características lúdicas que sublinham sua paridade com o jogo.

Minha sincera vontade é discutir aqui cada um desses capítulos, pois eles transbordam valiosas informações e pontos de vista sobre o mundo e a sociedade, do tipo que acendem lâmpadas sobre nossa cabeça. Mas não quero, por assim dizer, estragar o jogo para você. Em vez disso, recomendo² que leia por conta própria o trabalho de Huizinga e depois, se desejar, volte aqui para me contar nos comentários o que achou da obra. E não se preocupe: o livro é sucinto, curto e de fácil apreensão, garantindo que a leitura será – e não vou perder a chance de fazer um último trocadilho – jogo rápido.

 

 

 

 

¹ As citações ao longo do texto, exceto quando indicado o contrário, pertencem ao Homo ludens de Huizinga. Optei por esse esquema para não sobrecarregar o texto com informações repetidas. A referência completa do livro pode ser encontrada abaixo.

² Recomendo também que você busque adquirir a nova edição revista de Homo ludens, lançada pela Perspectiva em 2019. A versão que li (e usada para a redação deste artigo), lançada em 2014 pela mesma editora, é de longe o livro com a maior quantidade de incorreções que já passaram por estas duas mãos que mamãe me deu. Há todo tipo de erros: de pontuação, acentuação, concordâncias nominal e verbal, falhas de impressão, letras faltando, erros de alinhamento entre as letras, omissão de artigos, espaçamentos irregulares, aspas que se abrem sem nunca serem fechadas, palavras faltando, passagens mal traduzidas, pleonasmos – e a lista continua. Não tive acesso à versão de 2019, mas ela dificilmente será pior que a versão de 2014.

 

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REFERÊNCIAS

ALBORNOZ, Suzana Guerra. Jogo e trabalho: do homo ludens, de Johann Huizinga, ao ócio criativo, de Domenico De Masi. Departamento de Ciências Humanas da Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc): São Paulo, 2009.

HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 2014.

LIMA, Rodrigo Nogueira. A situação construída. Instituto de Arquitetura e Urbanismo: São Carlos, 2012. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/18/18142/tde-20062012-155720/publico/DissertLimaRodrigoNogueiraCorrig.pdf. Acesso em: 24 out. 2023.

RODRIGUEZ, Hector. The playful and the serious: an approximation to Huizinga’s Homo ludens. Disponível em: https://gamestudies.org/06010601/articles/rodriges. Acesso em: 27 out. 2023.

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