Quando comecei a jogar State of Decay 2, meses atrás, eu não sabia muito bem o que esperar, e muito menos o que fazer para me manter vivo em seu mundo de horror pós-apocalíptico. Após um breve tutorial, fui deixado sozinho no controle de dois personagens tão despreparados e inexperientes quanto eu, com nada além de um punhado de dicas circunstanciais para me guiar. Somente as cercas pouco confiáveis de um alojamento moribundo me separavam dos mortos-vivos que se arrastavam pela cidade. Àquela altura, minha base – se é que eu poderia chamá-la assim – não passava de uma área de cinco metros quadrados com duas ou três camas, um depósito esvaziado de suprimentos e um rádio para me comunicar com outros sobreviventes mundo afora.
Eu não sabia para onde ir ou o que fazer em seguida, até que, ao cair da noite, meu primeiro objetivo surgiu no canto superior da tela: tomar um posto avançado.
STATE OF DECAY 2: O INÍCIO DO FIM
Armado com uma faca, um taco de beisebol e apenas um pouco de coragem, deixei a precária segurança da base e me esgueirei pela mata ao redor, buscando um local para estabelecer meu domínio. Não demorou até que eu entrasse em um confronto sangrento com os novos habitantes daquele mundo, homens e mulheres cuja carne pendia vermelha de um punhado de ossos carcomidos, seus olhos brilhando na noite como vagalumes feitos de sangue. Logo descobri que as armas de fogo deveriam ser usadas apenas como último recurso: quanto mais eu disparava contra os zumbis, gastando a pouca munição que tinha, mais deles se aglomeravam ao redor de meus personagens, vindo de todas as direções. Em pouco tempo eu estava cercado.
Desferindo home runs com meu taco de beisebol, arrebentei a cabeça de tantas criaturas quanto minha curta barra de fôlego permitiu. Dentro de um posto de gasolina abandonado, o personagem que eu controlava e sua irmã (dois avatares pré-fabricados e com um raso histórico de desavença familiar) lutaram por suas vidas como dois animais acuados. Cinco minutos depois, os mortos – agora realmente mortos – formavam um tapete disforme no chão da loja de conveniência da Bronto Gas Station. Meus personagens, por outro lado, estavam bastante vivos. Saqueei o que havia para ser saqueado e tomei o local como meu primeiro posto avançado. Sucesso, pensei – talvez cedo demais. A partir dali, eu receberia uma cota diária de abastecimento de gasolina, o que ajudaria a alimentar o gerador da base e, eventualmente, fabricar explosivos e coquetéis molotov.
Retornamos vitoriosos pelo meio da floresta, minha irmã e eu, com sacos de suprimentos nas costas e conversando sobre uma tia sobrevivencialista que, imaginamos, talvez ainda estivesse viva em algum lugar da cidade. Distraídos, demoramos a perceber a aproximação de uma criatura que emergiu da mata e caminhou silenciosa pelas sombras em nossa direção. Era um homem esverdeado, calvo e inchado, com uma barriga redonda e protuberante. Já estava quase em cima de nós quando consegui reagir. Travei a mira bem no centro de seu umbigo sujo e disparei a última bala que restava no pente. O monstro explodiu em uma névoa infecciosa, lançando nacos de músculos e pele apodrecida sobre nós. Uma nuvem tóxica se formou à nossa volta, engolindo-nos dentro dela e drenando rapidamente nossa saúde.
Pior que isso: o barulho da explosão havia atraído todos os monstros em um extenso perímetro, e logo estávamos outra vez lutando por nossas vidas. Em questão de segundos, uma pequena montanha de cadáveres ambulantes se formou sobre nós. Consegui me esquivar e fugir com um fiapo de vida restante, cambaleando pela mata enquanto os mortos se aglomeravam sobre minha irmã e a despedaçavam brutalmente. Não tive coragem de tentar ajudá-la – sabia que já estava morta. Corri de volta para a base sem olhar para trás, até que os gritos dela se tornassem um murmúrio e desaparecessem na noite.
Quando o sol despontou na manhã seguinte, eu estava vivo, mas de alguma forma senti que havia fracassado. Voltei até o local onde deveria estar o corpo de minha irmã, na tentativa de resgatar os suprimentos que ela carregava consigo, mas não encontrei nada além de manchas de sangue e tripas retorcidas no chão. Sim, eu havia fracassado; mas de alguma forma estava vivo.
Muitos personagens morreram depois disso – tantos que jamais conseguiria me lembrar exatamente quantos. Apesar das inúmeras perdas, consegui seguir em frente graças aos novos recrutas que estavam sempre chegando à base, sobreviventes que eu resgatava de situações hediondas e que por necessidade ou desespero ingressavam em minha comunidade, servindo para alimentar o grande moedor de personagens genéricos que é State of Decay 2 – um dos melhores (ainda que mais impiedosos) jogos que tive o prazer de experimentar nos últimos anos.
GERENCIANDO O FIM DO MUNDO
SoD 2 jamais se dá ao trabalho de nos pegar pela mão. Com exceção de orientações e lembretes gerais, o jogador terá muito pouco com o que trabalhar em matéria de metas e objetivos. Pode ser frustrante no início, especialmente se você, assim como eu, está (mal) acostumado com a tendência dos jogos modernos de apontar com vários dedos indicadores o caminho a seguir em cada missão. Aliás, não existem missões preestabelecidas aqui – cabe a você determiná-las e, o que é mais difícil, cumpri-las. Seu propósito, de maneira abrangente, é um só: garantir a sobrevivência de sua comunidade.
Manter o moral de sua base elevado, por exemplo, é importante para que todos dentro dela estejam felizes – ou pelo menos não muito deprimidos, o que pode levar os personagens a abandonar a comunidade. Para isso, é fundamental ter água encanada e um abastecimento constante de energia elétrica, além de suprimentos como remédios e comida. Você consegue tudo isso dominando postos avançados, mas pode ter apenas alguns postos avançados por vez. Se estiver faltando comida, é possível criar um jardim em sua base e aprimorá-lo para fornecer mais alimento, desde que alguém em seu grupo domine a habilidade de horticultura ou jardinagem. Precisa de mais munição? Monte uma oficina e produza seus próprios projéteis, ou tome o controle de uma estação policial para receber munição diariamente. Ficou sem remédios? Vasculhe uma ambulância ou clínica veterinária, há grandes chances de encontrar o que precisa por lá.
A dificuldade está no fato de que você raramente terá tudo de que precisa ao mesmo tempo, e as diferentes necessidades do assentamento e dos próprios personagens estão frequentemente entrando em conflito uns com os outros. A gasolina, por exemplo, serve para abastecer os geradores e iluminar a base, aumentando o moral. Mas também é usada para abastecer os veículos, necessários para explorar a cidade. Ter uma enfermaria é fundamental para curar personagens feridos, mas consome remédios vertiginosamente. Construir um estande de tiro, por sua vez, vai melhorar a pontaria dos sobreviventes, mas aumentará o nível de ruído da base, chamando atenção dos mortos-vivos.
Depois de explorar, lutar e sobreviver, os personagens precisarão de tempo para descansar e se recuperar antes de sair novamente. Por isso, é interessante manter um número generoso de sobreviventes para ter sempre um ou dois à disposição. No entanto, quanto mais gente houver em sua comunidade, mais comida e medicamentos serão consumidos por dia. Você também precisará de materiais para criar e manter suas instalações, e de peças para consertar armas quebradas, além de influência (a moeda corrente do jogo) para solicitar armas, suprimentos ou veículos pelo rádio. Vê aonde quero chegar?
Para quem observa de fora, State of Decay 2 (ainda mais que o game anterior, lançado em 2013) pode muito bem parecer um jogo de ação em que você corre pelas ruas devastadas de uma cidade em ruínas atropelando mortos-vivos e esmagando repetidamente suas cabeças com uma inacreditável variedade de armas de corte e concussão. Mas a verdade é que se trata, antes de mais nada, de um jogo de gerenciamento e estratégia, que exige um cuidadoso planejamento se você não quiser assistir ao fim repentino de sua comunidade.
FAZENDO HISTÓRIA EM STATE OF DECAY 2
State of Decay 2 carece de uma narrativa propriamente dita. Em vez disso, o jogo propõe que você crie sua própria história – a história de sua comunidade e dos personagens que vivem e morrem por suas mãos. Além disso, o game não tem fim – ele acaba quando todos os seus sobreviventes deixarem de, adivinhe só, sobreviver. O mais perto que temos de um objetivo final é exterminar todos os Plague Hearts (chamados de Núcleos Pestilentos, na tradução brasileira) em cada um dos mapas disponíveis – quatro, sem considerar o DLC e o tutorial.
Acredito que SoD 2 deve muito de seu charme a essa liberdade narrativa oferecida ao jogador, que pode definir para si mesmo suas próprias metas e desafios. Eu, por exemplo, ao iniciar o jogo, estabeleci para mim um objetivo pessoal, que serviria como fio condutor de toda a minha campanha: vencer cada um dos mapas disponíveis (destruindo todos os Plague Hearts) em uma dificuldade diferente, usando a mesma comunidade para avançar de um mapa a outro, recriando a sensação que tinha ao assistir às primeiras temporadas de The Walking Dead, quando os sobreviventes viajavam pelo país em busca de uma cidade na qual se estabelecer.
Ao todo, SoD 2 nos presenteia com cinco dificuldades: Verde, Padrão, Terror, Pesadelo e Letal. Ignorei a primeira, para que a quantidade de níveis coincidisse com o número de mapas. Assim, iniciei minha campanha na dificuldade Padrão, no mapa Providence Ridge. Apesar da já descrita tragédia inicial que acometeu os primeiros passos de minha comunidade, fui capaz de logo compreender as principais mecânicas, limpar o mapa e avançar com relativa segurança até a próxima cidade, a rural e verdejante Meagher Valley, onde passei a maior parte de meu tempo com State of Decay 2.
Após cerca de 50 horas, eu tinha uma base sólida e autossustentável, ampla e cheia de instalações (com vários cômodos, uma enfermaria, um estande de tiro e um armazém repleto de suprimentos), muito diferente daquela minguada base do começo do jogo. Foi um período de fartura: os recursos de que precisava para abastecer a comunidade chegavam com mais frequência do que eu conseguia gastá-los.
Quando finalmente avancei para o terceiro mapa, a cinzenta Cascade Hills, estava confiante de que conseguiria cumprir meu objetivo autoimposto – exterminar os Plague Hearts de todos os mapas. Mas, é claro, eu estava tremendamente enganado. Ao transferir minha comunidade para Cascade Hills, subi a dificuldade para o penúltimo nível – e quem diria que minha existência ali se tornaria realmente um Pesadelo?
Acontece que, a cada nível de dificuldade, os recursos se tornam mais escassos, os sobreviventes mais fracos e os inimigos mais ferozes – o próprio jogo descreve o nível Pesadelo como “Um castigo por alguma coisa que você fez”. Nessa dificuldade, também aumenta significativamente o número de Plague Hearts a serem destruídos (de oito, na dificuldade Padrão, para 18 no nível Pesadelo). Some a isso a falta de munição, o maior gasto de comida e energia dos personagens, a elevada quantidade de inimigos, a constante penalidade de moral para os sobreviventes, a influência reduzida e os grandes custos de fabricação e manutenção das instalações, bem como a reduzida quantidade de veículos disponíveis no mapa, e temos a receita para um desastre anunciado.
Em Cascade Hills, mais do que em qualquer outro mapa, descobri a necessidade de agir cirurgicamente: entrar e sair dos locais sem fazer barulho foi essencial para sobreviver. Infelizmente, em muitos casos isso também significou percorrer enormes distâncias a pé, pois os veículos fazem barulho e atraem inimigos aos borbotões. É fácil esmagá-los sob as rodas ou contra o parachoque, é claro, mas poucos atropelamentos são o suficiente para destruir seu carro. O mesmo vale para as armas de fogo: um tiro na cabeça basta para derrubar a maior parte das criaturas, mas é o mesmo que tocar uma campainha avisando que o jantar está servido. No nível Pesadelo, aprendi que a besta e as armas brancas são companheiras fiéis, e o melhor a fazer para se manter vivo, em certas ocasiões, é simplesmente não fazer nada.
A certa altura, agora com cinco ou seis sobreviventes – número ideal para preservar a rotatividade de personagens sem gastar muito para mantê-los vivos –, constatei que a base era capaz de permanecer ativa e funcional sem minha interferência, gerindo-se praticamente sozinha. Havia gasolina, comida, munição e medicamentos chegando de todos os postos avançados em quantidade suficiente para que eu não precisasse enviar ninguém para fora em busca de recursos.
Eu tinha dois ou três jardins para cultivar alimento e remédios extras, e me dei conta de que a melhor forma de continuar vivo seria mantendo meus personagens dentro da base, sem fazer nada que colocasse a vida deles em risco. Olhando sob certa perspectiva, era como se eu houvesse encontrado um modo de vencer o jogo. Dei-me por satisfeito e, por cerca de um ou dois meses, não voltei a encostar em State of Decay 2. Enquanto eu não voltasse a jogar, concluí, meus personagens continuariam vivos. Era o melhor que eu podia fazer por eles.
Mas então vieram as atualizações, e meus planos de sobrevivência escorreram em uma espiral de sangue ralo abaixo.
ATUALIZANDO O APOCALIPSE
Desde 2018, a Undead Labs, estúdio responsável por SoD 2, faz um ótimo trabalho em oferecer suporte e aprimoramento ao jogo original, lançando atualizações frequentes que modificam ou implementam importantes mecânicas que mantêm o jogo (ao contrário da carne dos mortos-vivos que o infestam) surpreendentemente fresco. O único problema é que as ditas atualizações tornam o game cada vez mais difícil, complicando o já complexo trabalho dos jogadores.
A atualização 33, por exemplo, chamada de Ataque do Coração, fez com que os Plague Hearts passassem a enviar “hordas de infestação” para perseguir o jogador quando provocados. Quando três ou mais hordas de infestação se reúnem em volta da base, elas criam um “local de cerco”, ameaçando a segurança da comunidade. Depois disso, é questão de (pouco) tempo para que os mortos-vivos lancem um ataque coordenado contra seus sobreviventes, invadindo a base e matando tudo o que estiver lá dentro.
Essa atualização, lançada em maio deste ano, arruinou completamente minhas táticas de sobrevivência. Quando retornei ao jogo, logo me dei conta de que não poderia continuar me escondendo dentro da base, correndo o risco de que ela fosse invadida por um desfile de canibais. Agora, obrigatoriamente, eu precisava sair de meu esconderijo e me deslocar pela cidade para exterminar as infestações, antes que elas fizessem o mesmo comigo. Isso apimentou consideravelmente o jogo, mas também quebrou minhas pernas. Ainda assim, com muito custo, fui capaz de prosseguir com meus planos e exterminei metade dos Plague Hearts espalhados pelo mapa sem perder nenhum personagem.
Porém, como já era de se esperar, eventualmente eu levei a pior. Isso porque, em setembro deste ano (apenas algumas semanas atrás), a Undead Labs soltou em cima de mim a atualização 34, Reviravolta Inesperada, responsável por inserir modificadores de imprevisibilidade que podem tanto auxiliar o jogador quanto (principalmente) dificultar sua vida.
De um dia para outro, uma mutação é capaz de tornar os zumbis mais atentos a ruídos ou mais velozes do que eram anteriormente, enquanto enclaves de inimigos humanos podem surgir a qualquer momento no mapa. Por conta dessa atualização, grupos hostis de sobreviventes tomaram, em dois momentos distintos, o controle de meus postos avançados, interrompendo o fornecimento de munição e comida e me obrigando a cruzar a cidade para confrontá-los. Gastei muito mais munição do que deveria nesses confrontos, e dias depois estava praticamente sem balas.
Tive que destruir os jardins e plantações da base, a fim de abrir espaço para construir novas instalações que me ajudassem a produzir a munição necessária para lidar com as crescentes ameaças. Sem as plantações, porém, logo fiquei sem comida e, pouco tempo depois, mais uma vez sem munição. Perdi meu único veículo, consumido em uma bola de fogo durante uma fuga desesperada, e precisei retornar a pé para casa em uma jornada que durou quase um dia inteiro. Um de meus melhores sobreviventes morreu nessa empreitada, prenunciando o destino de todos os outros.
Por fim, incapaz de gerenciar simultaneamente todos os pormenores do apocalipse, acabei subestimando a velocidade com que as infestações se espalhavam pelo mapa. Como resultado, minha base foi atacada por uma horda gigantesca, mais ou menos como se as portas do inferno se abrissem repentinamente para despejar todos os seus mortos sobre mim. Enfrentei como podia a tropa de cadáveres que entravam pelos portões da base e invadiam o depósito, a cozinha e os quartos onde meus sobreviventes descansavam. Naquele dia, todos na comunidade lutaram por suas vidas, e quase todos a perderam.
À medida que eu fuzilava, chutava e esfaqueava a massa desmorta que entrava como uma enchente putrefata pelas portas e janelas, mensagens surgiam no canto da tela me informando sobre a morte de meus colegas, sem que eu pudesse fazer nada para evitá-las. A primeira a cair foi Tracey, perita em armas e corredora exímia. Pouco depois de ser noticiado de sua morte eu a reconheci entre os zumbis que avançavam sobre mim, e senti o coração apertado enquanto a derrubava e arrancava sua cabeça com um facão. Tracey estava comigo desde o primeiro mapa, e era talvez minha personagem favorita.
Segundos depois foi a vez de Benson, uma agente especial que era certamente a unidade mais habilidosa e competente da equipe, o que não adiantou de nada quando ela foi cercada por uma parede de inimigos furiosos. Enquanto isso eu controlava Trish, a líder da comunidade, mas ela também não durou muito. Foi soterrada por uma avalanche de criaturas que morderam e rasgaram sua carne até despedaçá-la em tantas partes que eu não saberia dizer em quais lugares da base ela estava exatamente quando morreu.
Após a morte de Trish, assumi automaticamente o controle de Melange, a médica do grupo e última sobrevivente da comunidade. Contra todas as probabilidades, consegui exterminar os mortos-vivos restantes e isolar mais uma vez a base. Mas era tarde. Agora eu estava sozinho, cercado pelos restos de meus companheiros caídos. Pedaços rosados de intestino cobriam o chão; pinturas sanguíneas redecoravam as paredes. Senti o mundo desabar sobre minha cabeça quando a noite finalmente chegou. Eu havia fracassado com aquela comunidade, e não havia ninguém a quem culpar além de mim mesmo.
ESTADO DE DECADÊNCIA
Depois de 70 horas de jogo, vi tudo aquilo que eu havia construído ruir em poucos minutos bem diante destes olhos que os mortos hão de comer. Durante a madrugada, perdido em pensamentos depressivos enquanto observava a cidade destruída pela janela do segundo andar, fiz Melange sacar uma pistola e recarregá-la com as últimas balas de que ainda dispunha, mas não encontrei uma opção para disparar contra minha própria cabeça. Foi quando tomei a decisão de ter uma morte digna. Eu não ficaria ali dentro esperando a próxima invasão. Em vez disso, tentaria levar comigo todos os mortos que conseguisse.
Assim, quando o dia amanheceu, carreguei o inventário de Melange com todos os coquetéis molotov, granadas, explosivos e armas de fogo que encontrei no depósito – não eram muitos, mas haveriam de ser o bastante – e abandonei a falsa segurança da base para nunca mais retornar. A pé, marchei lentamente pela cidade até alcançar o Plague Heart mais próximo, e então lancei sobre ele todo o fogo do inferno e enxofre que trazia comigo na mochila. O covil ardeu em chamas, atraindo os zumbis ao redor. Outra vez me peguei lutando por minha vida, mais por instinto do que por qualquer outro motivo, e fiquei surpreso ao descobrir que novamente havia sobrevivido – menos um Plague Heart no mundo, mais inimigos forrando o chão. Mas logo compreendi que minha pequena vitória era apenas uma cruel piada do destino: Melange havia sido infectada com a praga sanguínea, uma doença que, se não tratada, transforma rapidamente os personagens em mortos-vivos.
Não havia mais remédios na base – muito menos em meu inventário – para produzir uma cura. Em menos de dez minutos eu morreria e, um instante depois, ressuscitaria como parte do exército monstruoso que infestava a cidade, apenas mais um defunto reanimado entre vários – e minha comunidade estaria, de uma vez por todas, exterminada. Corri por um e outro quarteirão tentando encontrar medicamentos. Invadi clínicas veterinárias, prédios e estabelecimentos comerciais na tola esperança de encontrar um saco de remédios escondido em algum lugar, mas não encontrei nada além de suprimentos inúteis que de nada me serviriam depois que a infecção acabasse comigo.
Faltando apenas um minuto para morrer, fiz as pazes com meu triste destino e busquei consolo no fato de que, pelo menos, eu teria uma boa história para contar aos leitores do Antropogamer depois que morresse. Afinal, era só isso o que realmente importava: ter material suficiente para produzir um texto minimamente interessante, ainda que ele se tornasse tão longo que poucas ou mesmo nenhuma pessoa teria paciência de acompanhá-lo até o final (e, por favor, me diga nos comentários se você fizer parte desse seleto grupo).
Percebi que só me faltava mesmo uma boa captura de tela para fechar com chave de ouro o artigo que escreveria em meu pós-morte, depois que a derradeira sobrevivente de minha estimada comunidade engrossasse as fileiras de personagens que deixei morrer.
Como se meus desejos fossem magicamente atendidos, nos segundos de vida que me restavam avistei o maior e mais violento inimigo do jogo subindo a rua em minha direção. Agora sim eu teria um final perfeito. Sorri de mim para mim mesmo enquanto disparava a espingarda seguidas vezes contra o Juggernaut, arrancando nacos de carne de seu rosto e de seu peito e de sua barriga flácida enquanto ele se aproximava de mim a passos largos, pronto para me derrubar com seus enormes braços de halterofilista, e continuei sorrindo mesmo quando ele já estava tão perto que eu podia sentir o cheiro da morte me envolvendo em um abraço fraterno.
Com a mão direita engatilhando o mouse, continuei a descarregar a arma contra o monstro, um tiro potente depois do outro, enquanto usava a esquerda para registrar meus momentos finais. No fim, eu tinha tudo de que precisava: uma gloriosa história cheia de mortes e uma bela foto para encerrar minha peregrinação nesse universo decadente de horror e morte. No fim, sorri pela última vez enquanto o monstro erguia seus punhos para encerrar qualquer vestígio de minha vida e história naquele mundo, e aceitei de bom grado a inevitabilidade de meu próprio destino. No fim, soube que em poucos segundos eu estaria morto; mas, até lá, continuaria vivendo para sempre.