World of Horror: uma espiral de sangue e vísceras em 1-bit

Uma carta de horror a Junji Ito e Lovecraft.

“Cidade de Shiokawa, Japão, 198X. Algo estranho está acontecendo com nossa cidade”, informa a tela em baixa resolução de um computador cinzento – um monitor dentro de um monitor. Não sei quantas vezes já passei por isso. Não sei quantas vezes ainda irei passar. Pode ser minha quinta ou vigésima tentativa – parei de contabilizá-las dezenas de tentativas atrás. Nesta encarnação sou uma estudante colegial, ou um fotojornalista, ou quem sabe apenas um cara que gosta de escrever sobre videogames tentando sobreviver em um videogame. Embalada por uma trilha sonora pegajosa e minimalista, a introdução novamente me informa dos horrores que ameaçam a cidade: figuras encapuzadas rondando a floresta; criaturas mutantes na enseada; deuses antigos para os quais a humanidade não passa de um saboroso banquete.

Armado com pouco mais que algumas pistas, um punhado de armas improvisadas e minha própria sanidade mambembe, devo investigar os mistérios espalhados pela cidade e além, incluindo os planos etéreos que se estendem para fora de nossa realidade. Desta vez, contra todas as probabilidades, pode ser que eu sobreviva. Com muita sorte e um pouco de habilidade, talvez eu consiga concluir minha missão e evitar que seres extradimensionais devorem o planeta que chamo de lar. Mas verdade seja dita: estatisticamente, é muito mais provável que eu encontre uma morte trágica e repentina do que um final feliz. Eu sei disso porque já estive aqui antes. Eu conheço o nome do jogo. Este não é um mundo de gentilezas.

É um Mundo de Horror.

QUANDO JUNJI ITO ENCONTRA LOVECRAFT

Lançado em outubro de 2023, após três anos em acesso antecipado, World of Horror se autodescreve como uma homenagem aos trabalhos do escritor H. P. Lovecraft e do mangaká Junji Ito. Trata-se de um jogo curioso: sua arte em 1-bit (modulável para 2-bits nas opções gráficas) emula o visual de jogos de computador baseados em texto do fim da década de 80, enquanto a trilha sonora em estilo chiptune evoca a atmosfera soturna e hipnótica dos joguinhos de SNES e Game Boy. Mais que isso, é digno de nota o fato de que – e não me pergunte como – o jogo foi inteiramente ilustrado no MS Paint, um programa que eu achava servir apenas para desenhar bonecos-palito e fazer colagens tenebrosas durante minha primeira infância. O responsável pelo game é o artista polonês Pawel Kozminski, fundador do “estúdio de um homem só” panstasz – engrossando a já promissora lista de desenvolvedores independentes da Polônia.

Por baixo de sua pele retrô e provocativa, World of Horror oculta o esqueleto firme e bem estruturado de um jogo roguelite baseado no combate em turnos, com partidas que não costumam durar mais que uma hora e meia (se você não morrer antes, é claro). Isso significa que cada rodada será diferente da anterior, com novos encontros, protagonistas e missões a serem cumpridas. Mas o verdadeiro corpo do jogo está em sua escrita, nas situações e nos monstros com que nos deparamos a cada nova jogada. Há todo tipo de bizarrices para serem confrontadas: cabeças flutuantes, modens sencientes, suicídios coletivos, comas epidêmicos, fantasmas de banheiro. As influências são diversas, e os easter-eggs abundantes. Até agora, consegui reconhecer alusões ao quadrinho Suicide Club, ao jogo The Last of Us, à franquia Evil Dead e até mesmo ao clássico Bruxa de Blair, entre outros – e estou certo de que há uma porção de referências ainda por descobrir.

Apesar de sua generosa dose de ameaças sobrenaturais, o jogo se sobressai mesmo – visual e narrativamente – ao lidar com questões de horror corporal que deixariam qualquer Cronenberg (pai ou filho) orgulhoso. Um dos mistérios mais chocantes envolve a morte de meninas cujas pernas foram arrancadas e substituídas por rabos de peixe por alguém que desejava transformá-las em “sereias”. Há muito de grotesco a ser visto aqui: casais fundindo-se em um único corpo de duas cabeças, larvas eclodindo de um globo ocular, homens transmutados em tênias humanas. Para nossa sorte, Kozminski não poupou esforços para introduzir no jogo todo tipo de abomináveis criaturas saídas diretamente de um pesadelo surrealista.

E não apenas os inimigos monstruosos são vítimas dessa violência estética, como também os próprios protagonistas. À medida que avançamos pelo jogo, lutando e sobrevivendo (ou não) aos horrores cada vez mais insólitos lançados sobre nós, o personagem que controlamos vai gradativamente sucumbindo à pressão psicológica e física dos abusos de World of Horror. Costelas partidas, mandíbulas quebradas e hemorragias deformam o retrato de nosso avatar enquanto abrimos caminho pelos horrores desse mundo, ao mesmo tempo que nossa sanidade é testada a cada encontro. Se o medidor de vida chegar a zero, morremos; se perdermos a razão, enlouquecemos. Em ambos os casos, o jogo termina e somos endereçados outra vez à tela inicial.

O visual tétrico de World of Horror é complementado por uma escrita econômica, tão certeira e afiada quanto uma facada no umbigo, capaz de incutir surpresa e ansiedade em equivalentes medidas. Produzido em conjunto com a escritora malaia Cassandra Khaw, o roteiro – incluindo aí a caracterização de personagens, a narração, o desenrolar dos mistérios e até mesmo a descrição de itens e cenários – é o ponto alto do jogo. Cada mistério tem diferentes finais, o que favorece a rejogabilidade, e há pelo menos vinte deles a serem resolvidos (ainda que somente uma pequena porção possa ser solucionada a cada partida). Descobrir cada um dos finais e observar a forma como a resolução dos mistérios afeta a cidade envolve World of Horror em um charmoso verniz narrativo que o aproxima de consagradas obras de horror da literatura e do cinema, como aquelas escritas ou derivadas do trabalho de Clive Barker e Stephen King.

Há um ar de pessimismo que muito me agrada na escrita do jogo: raramente conseguimos salvar os personagens coadjuvantes, e mesmo os aliados que recrutamos podem ser sacrificados em prol de nossa própria sobrevivência. Além disso, cada mistério resolvido acarreta necessariamente uma desvantagem à cidade e ao jogador – seja a contaminação da água, que nos impede de recuperar a vida entre um mistério e outro, seja o aumento no número de bandidos, elevando a probabilidade de confrontos –, o que torna ainda mais difícil a tarefa de chegar vivo ao fim da rodada, mergulhando-nos cada vez mais fundo em uma espiral de medo e desolação.

E por falar em espirais…

UM PESADELO HELICOIDAL

Embora a influência de Lovecraft seja clara na escrita de World of Horror – sobretudo na crescente loucura que permeia a história e na ameaça cósmica dos Deuses Antigos, que têm nomes como Cthac-Atorasu, Ithotu e Ath-Yolazsth –, a maior inspiração do jogo são mesmo as criações de Junji Ito, desenhista e escritor de mangás que traz em seu currículo obras como Tomie, Gyo e A sala de aula que derreteu. Desde o traço das ilustrações até a temática dos contos que servem de missões para o game, passando pela forma de contar a história e inclusive por pequenas homenagens, tudo em World of Horror transpira Junji Ito – ele próprio um autor inspirado por Lovecraft. E nenhum quadrinho de Ito é mais reverenciado no jogo do que Uzumaki, possivelmente seu trabalho mais famoso.

Uzumaki conta a história de uma cidade japonesa dominada pela “maldição da espiral”, uma força maligna que enlouquece os moradores, provocando diferentes transformações físicas em seus corpos e levando muitos à morte. Tudo no mangá gira em torno das espirais. Quando um personagem é atropelado no meio da rua durante o capítulo 7, seu cadáver retorcido fica preso à roda do carro em uma espiral de carne. Mais tarde, ele ressuscita no cemitério e salta de sua cova com a mola de suspensão do veículo ainda presa ao corpo, transfigurado em um garoto-espiral. Pessoas são metamorfoseadas em caracóis gigantes, suas costas espiraladas até se tornarem cascos. Cabelos crescem da noite para o dia e ganham vida própria, contorcendo-se em cachos impossíveis que desafiam as leis da física. Redemoinhos se formam nos córregos sem razão aparente; a fumaça do crematório se desprende em um rastro espiralado em direção ao céu. Logo fica claro que as espirais estão tomando conta da cidade.

Mais do que explorar a fobia gerada por formas geométricas e espaciais, Uzumaki instila o medo a partir do cotidiano (especialidade de Junji Ito) – um medo que se expande para fora das páginas da HQ quando percebemos que a espiral é um dos elementos mais abundantes da natureza. Ela está presente na harmonia estética da proporção áurea, nos padrões de crescimento de plantas e árvores, no formato dos chifres de certos animais, no movimento das ondas e dos furacões e, se não bastasse, na configuração da própria Via Láctea, com seus braços espiralados ao redor de um disco central.

Na antiga Babilônia, por motivações espirituais, labirintos eram construídos em forma de espiral¹. A cóclea, localizada em nosso ouvido interno, também é um canal de dimensões espiraladas. Até mesmo o psiquiatra e psicanalista suíço Carl Jung, fundador da psicologia analítica e reconhecido por seus estudos sobre arquétipos e inconsciente coletivo, afirma que nos desenvolvemos psicologicamente em uma espiral², pois estamos sempre passando sobre o mesmo ponto em que já estivemos antes: fazendo as mesmas coisas, vivendo da mesma forma, circulando pelos mesmos ambientes. Mas as coisas que fazemos nunca são exatamente as mesmas; o modo como vivemos e os lugares por onde transitamos se modificam, assim como nós, de modo que nossa rotina cíclica é, na verdade, uma espiral em direção ao crescimento, e não um círculo fechado em si próprio.

O mesmo vale para os sonhos:

“Como manifestações de processos inconscientes, os sonhos giram ou circundam o centro, aproximando-se dele à medida que as amplificações aumentam em clareza e alcance. […] Mas, como eu disse, o processo de desenvolvimento revela-se, numa análise mais detalhada, como cíclico ou em espiral. Poderíamos traçar um paralelo entre esses cursos em espiral e os processos de crescimento das plantas; na verdade, o motivo vegetal (árvore, flor etc.) frequentemente reaparece nesses sonhos e fantasias e também é desenhado ou pintado espontaneamente.”³

Seguindo a lógica de Uzumaki e da própria natureza da vida (e da morte), World of Horror abraça a concepção da espiral como ferramenta não apenas estética, mas narrativa e estrutural. Além de referências diretas ao quadrinho de Junji Ito – como adolescentes lendo um mangá sobre espirais no pátio do colégio –, encontrei botões no menu e inimigos em forma de espiral, rastros de fumaça espiralando ao vento, nuvens formando espirais no céu e inclusive um item chamado “Spiral Hood”, que permite substituir o rosto de nosso avatar por uma (e você não vai acreditar nisso) espiral. Mas o que mais chamou minha atenção foi a forma como o próprio enredo do jogo, e por consequência sua gameplay, acabam por se apropriar mecanicamente da espiral em sua fundação.

A leitura de Jung sobre nosso desenvolvimento psicológico em espiral se encaixa perfeitamente no contexto de World of Horror. Das dezenas de partidas que joguei, muitas delas se pareceram ligeiramente umas com as outras – fosse porque estava experimentando pela terceira ou quarta vez o mesmo mistério, fosse porque estava enfrentando novamente o mesmo inimigo –, dando por vezes a impressão de estar andando (ou seria jogando?) em círculos. Mas havia pequenas e notáveis diferenças para que a experiência jamais fosse igual: um novo resultado para um mesmo confronto, um final inesperado para um conhecido mistério. Logo percebi que a experiência de World of Horror não tem nada de circular. Assim como nós, ela se desenvolve e ganha corpo em uma espiral pela qual avançamos lenta mas continuamente, sem mal perceber que estamos sendo sugados para dentro de um redemoinho de prazer sombrio. A sensação de estar preso em um ciclo infinito é reforçada pela trilha sonora, que em sua repetitividade consegue ser magnética a sua própria maneira – rodando dentro da minha cabeça mesmo quando eu estava longe do computador, girando e girando como um disco riscado em uma pequena vitrola no fundo dos meus ouvidos.

WORLD OF HORROR: O FIM ESTÁ PRÓXIMO

Nada representa melhor a estrutura em espiral de World of Horror do que o ambiente em que se desenrola o último ato do jogo (isto é, desde que você consiga sobreviver até lá). Ao solucionar os mistérios espalhados pela cidade, o jogador é presenteado com chaves que dão acesso a um farol – outra referência a Uzumaki –, onde se esconde a maligna divindade que tenta devorar o mundo. Assim, a última fase do jogo consiste em uma série de desafios que se revelam à medida que subimos as escadas espiraladas do farol, tentando (mas pouco provavelmente conseguindo) alcançar o topo e derrotar o vilão.

Das muitas tentativas que fiz para terminar o jogo, em apenas uma fui bem-sucedido. Isso significa que, incontáveis vezes, falhei miseravelmente em meu intuito de assegurar a sobrevivência da humanidade. Esse retumbante fracasso, porém, não me impediu de continuar tentando e tentando mais uma vez. De continuar voltando para mais uma partida, e outra, na esperança de conseguir chegar novamente ao fim ou, na pior das hipóteses, pelo menos encontrar algum tipo diferente de conclusão para esse ou aquele mistério. Quando menos percebi, eu estava preso na espiral de World of Horror, incapaz de abandonar esse estranho e implacável mundo, apesar de toda a frieza com que ele jamais deixou de me tratar.

Há algo de viciante nesse jogo. Há algo de perigoso. Assim como as personagens de Uzumaki, começo a sentir que estou perdendo o controle de minhas próprias ações. Mesmo agora, uma necessidade terrível se apodera de mim. Como em um sonho, encontro-me mais uma vez diante de um cenário já conhecido, embalado por uma trilha sonora pegajosa e minimalista enquanto sou informado sobre todos os horrores que ameaçam minha existência. Desta vez, contra todas as probabilidades, pode ser que eu sobreviva.

“Cidade de Shiokawa, Japão, 198X. Algo estranho está acontecendo com nossa cidade”, informa a tela em baixa resolução de um computador cinzento – um monitor dentro de um monitor. Não sei quantas vezes já passei por isso. Não sei quantas vezes ainda irei passar.

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

¹ FLORIANI, Gabriel Ramos; FIGUEIREDO, Maria do Desterro de; SILVA, Armando de Oliveira e. Memórias, sonhos e labirintos: uma compreensão simbólica dos sonhos de labirinto. Revista PsicoFAE: Pluralidades em Saúde Mental, v. 10, n. 2, 2021. Disponível em: https://revistapsicofae.fae.edu/psico/article/view/363/234. Acesso em: 8 nov. 2023.

² JUNG, Carl. Análise de sonhos: notas sobre o seminário ministrado de 1928 a 1930 por C. G. Jung. Trad. Armando de Oliveira e Silva. Curitiba, 1995. Disponível em: https://www.frjaltosanto.edu.br/site2/wp-content/uploads/2021/06/Analise-dos-Sonhos-C.-G.-Jung.pdf. Acesso em: 8 nov. 2023.

³ RUSSACK, Neil W. Amplification: the spiral. Journal of Analytical Psychology, n. 29, 1984, p. 125-134. Disponível em: https://aras.org/documents/amplification-spiral-0. Acesso em: 8 nov. 2023.

 

 

Este texto foi produzido com uma cópia gentilmente cedida pela Ysbryd Games.

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