Antropogamer

Antropogamer: um manifesto

Está na hora de repensar a crítica de jogos.

Concluindo este primeiro ano de trabalho, decidimos realinhar nossa identidade: deixamos de ser o que éramos para finalmente ser o que somos. Desse modo, rejeitamos nosso nome de batismo em função de outro que melhor dialoga com os propósitos e idealizações deste projeto. Somos agora e daqui em diante Antropogamer – a pessoa que joga.

Como uma declaração de intenções deste novo momento, mas também um chamado às armas, publicamos a seguir um breve manifesto que explica nossos objetivos, crenças e esperanças quanto à crítica de jogos.

Que este documento lhe possa ser útil, assim como certamente será para nós.

MANIFESTO ANTROPOGAMER

Somente o jogo nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. 

A vida em sociedade é ela própria uma espécie de jogo. A guerra, a literatura, a política. Diferentes jogos jogados no grande esquema das coisas. Jogos na areia e no gramado; de tabuleiro e de palavras. Jogos mentais, olímpicos e, muito mais recentemente, eletrônicos. Ah, os jogos eletrônicos! Estão aí há tão pouco tempo e já temos tanto a dizer sobre eles. E o que temos a dizer sobre eles?

Jogos eletrônicos são mais do que entretenimento: são arte.

Mas o que é arte? Quem sabe reconhecê-la?

Por décadas os videogames foram relegados ao papel de brinquedo, como algo tão divertido que simplesmente não pudesse ser levado a sério. Não mais. Aos quatro ventos, jogadores e críticos agora reclamam o posto de arte para seus jogos favoritos. Sim, temos certeza: videogames são arte.

Mas como se parece a arte? Quem pode encontrá-la?

Videogames não mudam o mundo: não alteram o curso das eleições ou arrefecem a temperatura do planeta. Mas eles podem, assim como um grande livro ou um bom filme, mudar as pessoas, exatamente como se espera das melhores obras de arte. 

Jogos eletrônicos são arte, mas não só: eles também são cultura.

E quem pode nos dizer o que é ou deixa de ser a cultura? 

É papel do crítico de jogos eletrônicos elevar o status cultural dos jogos, assim como fizeram para os filmes os primeiros críticos de cinema, e muito antes deles os críticos teatrais e literários para seus próprios meios. Ao tratar essas peças como obras de arte dignas de serem levadas a sério, o crítico contribui para a legitimação dos jogos como artefatos culturais, e não meros produtos mercadológicos.

Jogos eletrônicos são cultura: mas também são entretenimento.

Ao crítico cabe considerar todas essas esferas – da arte, da cultura e do entretenimento  – ao analisar um produto artístico que, em última instância, funciona apenas enquanto objeto da cultura na qual se insere. Pois não só as pessoas dependem dos jogos – amorosos, políticos, sociais e religiosos – como também os jogos dependem das pessoas, seja para vencê-las ou serem por elas vencidos.

Assim, a fim de fomentar uma crítica que interponha os diferentes aspectos da cultura humana na análise de jogos eletrônicos, registramos aqui os princípios que deverão balizar as produções deste site – e, assim esperamos, que possam também inspirar a reflexão de nossos pares.

1. Jogos também são arte

Arte é aquilo que queremos que seja. Se desejamos considerar os videogames como obras de arte, devemos antes criticar os videogames como obras de arte. Desconheço quem dê notas a um Van Gogh, Shakespeare ou Beethoven. O sistema de pontuações é uma régua que jamais servirá de medida para uma crítica justa. Jogos devem ser interpretados e criticados em um contexto mais amplo do que uma escala numérica é capaz de significar. Em vez de notas, pretendemos oferecer opiniões; em vez de números, conclusões. Eis nossa missão: analisar os jogos como fragmentos de uma cultura, e não meros produtos de consumo rápido. Entender o que um jogo está tentando comunicar, como ele se encaixa no contexto cultural mais amplo e como ele contribui para a arte de jogar: eis nossa proposta.

2. Jornalismo de jogos × Crítica cultural

Cabe ao jornalismo de jogos reportar – sejam notícias, fatos ou opiniões –, enquanto a crítica se ocupa em analisar e interpretar. Ambas as atividades são importantes para atender públicos distintos. A típica resenha opinativa jornalística dirá a você se o jogo é bom ou ruim, quanto tempo ele dura e se vale a pena comprá-lo, correspondendo a uma visão dos jogos como produto. Já a crítica cultural explicará por que o jogo é bom ou ruim, quanta análise ele merece e se vale a pena pensar mais sobre ele – uma visão dos jogos enquanto cultura. Não pretendemos aqui levantar muros, e sim derrubá-los: admitimo-nos poligâmicos, flertando com ambas as vertentes da análise de jogos – a crítica e a jornalística. O objetivo, no entanto, será sempre o mesmo: propor uma análise global dos jogos eletrônicos, que não se restrinja a despedaçá-los em partículas avaliativas como “gráficos”, “áudio” e “jogabilidade”, mas que seja antes capaz de considerá-los a partir da pluralidade das experiências humanas que o compõem.

3. A subjetividade como arma 

Nessa proposta antropocêntrica, o autor será parte da crítica que escreve – implícita ou explicitamente. O que isso significa: uma mistura de jornalismo gonzo com literatura, deslocando o autor da crítica para dentro e para fora do texto de acordo com a necessidade, enquanto alimentamos a escrita com generosas doses de experimentalismo. O que isso não significa: que opiniões pessoais devam prevalecer sobre o julgamento criterioso do objeto avaliado. Não vamos aqui buscar a mitológica imparcialidade jornalística, muito menos confundir impressões pessoais com análise crítica. O que faremos é relatar nossa experiência com o jogo, trazendo para a mesa todas as cartas que temos à disposição enquanto jogadores, mas também enquanto seres humanos. Não devemos confundir gosto pessoal, relatos sobre desempenho técnico e descrições mecânicas com crítica de jogos. Queremos escrever resenhas, artigos, quiçá pequenas teses – e não meramente impressões pessoais. Queremos escrever com parcialidade e subjetividade, priorizando a experiência pessoal (aquela do autor) acima da experiência geral (aquela do público). Escrevemos para quem deseja pensar os jogos eletrônicos, e não apenas comprá-los. Nesse sentido, queremos ser mais do que um radialista recitando informações para os ouvintes – queremos ser o músico que canta suas paixões no rádio.

4. Jogos também são política

Nenhum jogo é produzido no vácuo, feito por pessoas nascidas em tubos de ensaio. Reclamar de supostas agendas ou vieses políticos em videogames não está em consonância com aquilo que assumimos no primeiro tópico: jogos também são arte. A arte jamais será estéril: ela é apenas tão grande quanto o forem as pessoas que a produzem e interpretam. Mesmo enquanto produtos mercadológicos (o que de fato são), os jogos são geridos, produzidos e comercializados sob luzes específicas. Essas luzes envolvem o amplo espectro da condição humana: a vida, a morte, a política e a economia. As lutas de classe, a violência, a religião, o mercado. Jogos eletrônicos são a soma de tudo isso, direta ou indiretamente, assim como os seres humanos que os desenvolvem. E porque desejamos avaliar os jogos criticamente, manteremos sempre em nosso horizonte a inerente diversidade humana – seja de crenças, sexualidades, etnias ou opiniões.

5. O jogo de ontem é tão importante quanto o de hoje

Não nos apegamos a temporalidades, nem esperamos discutir apenas os jogos do ano. Já estamos bem servidos de páginas e canais que se ocupam tão somente das novidades, e nos solidarizamos com quem precisa cobrir um jogo de 200 horas em uma semana por questões de embargo. Não é nosso caso. Aqui fazemos nosso próprio horário, dando tempo ao tempo. Isso porque os jogos precisam de um espaço temporal flexível para serem devidamente criticados; para maturarem em nossa cabeça. Às vezes dias, às vezes anos. Por isso, não tenhamos pressa: valorizemos a contemplação. Pois bem faz aquele que se permite analisar um jogo de dez anos atrás com o mesmo ímpeto que avalia o lançamento da semana passada.

6. Surpreenda a si mesmo

Não queremos repetir fórmulas e opiniões prontas, nem ficar aprisionados em zonas de (des)conforto. Não queremos uma coleção de dez resenhas diferentes dizendo todas as mesmas coisas, nem os leitores devem esperar por isso. A palavra aqui é dinamismo. O nome do jogo é criatividade. Entreter o leitor, mas também cooptá-lo para a discussão cultural, sendo divertido quando for para ser divertido, falando sério quando for hora de falar sério. O leitor deve sempre sair de nosso texto carregando um pedaço a mais de informação consigo, por menor que seja – uma citação, uma dica de leitura, uma história pessoal que apenas o autor seria capaz de contar, e que pode mudar sobremaneira a perspectiva de outrem sobre uma obra: eis o papel do antropocrítico. Cada resenha deverá se distanciar da anterior, e ao mesmo tempo de todas as resenhas escritas por outras pessoas. A fim de melhorar a alfabetização da análise de jogos, é necessário que esperemos mais de nossos próprios leitores, assim como nossos leitores devem esperar mais de nós.

7. A crítica de jogos como laboratório

Experimentar é frequentemente a melhor forma de se alcançar novas conquistas. No espírito da criatividade, da inovação e da busca por singulares formas de expressão, perseguiremos o experimentalismo. Queremos escrever críticas que possam ser hilárias e, ao mesmo tempo, infinitamente tristes. Textos que borrem a fronteira entre a prosa e a resenha, entre o literário e o factual. Queremos escrever com técnica, mas também com paixão. Com liberdade, mas embasamento, valendo-nos de porções equivalentes de pesquisa e improviso, de humor e seriedade, de indulgência e conflito. Que cada texto seja tão único e especial quanto o objeto que critica. Que cair na mesmice nunca seja uma possibilidade. Que a crítica cultural também possa, estes são nossos votos, ser chamada de literatura.

8. Nada é imutável

Em vez de porretes, sejamos cordas. Em vez de paredes, sejamos água. Estamos constantemente em desenvolvimento. Nada é verdadeiro, tudo é permitido. Ao longo do tempo, itens podem ser acrescidos ou subtraídos desta lista de acordo com nossas necessidades e objetivos futuros. O conhecimento é uma construção coletiva, e a cada momento estamos todos aprendendo um pouco mais sobre tudo. É nosso desejo que esse aprendizado constante seja um farol iluminando o caminho, e jamais um obstáculo bloqueando a passagem.

São esses os fins de nosso trabalho, mas não o fim deste manifesto. Assim como os jogos e a cultura, este documento poderá ser modificado à medida que novas ideias surgirem ou velhas propostas morrerem. Que uma crítica cultural mais afiada seja o propósito coletivo daqueles que se importam com o entretenimento proporcionado pelos jogos eletrônicos, mas também com o valor artístico e cultural a eles atrelado. Sem o jogo, a civilização é impossível

Sejamos então aqueles que jogam, mas também aqueles que mantêm viva a cultura de seu tempo. Sejamos alguém que se importa – não apenas com a arte, mas também com quem a produz. Sejamos mais que jogadores. Sejamos pessoas inteiras.

Sejamos um Antropogamer.

 

 

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