Poucos jogos podem se gabar de ter uma narrativa tão densa e impactante quanto Detention. Produzido pelo estúdio taiwanês Red Candle, o jogo retrata um período histórico muito específico: o “Terror Branco”, época em que as autoridades de Taiwan (ou República da China) organizaram uma caça às bruxas para perseguir e assassinar pessoas acusadas de serem comunistas ou aliadas da China, resultando na morte de dezenas de milhares de civis. A lei marcial instaurada pelos militares se arrastou por quase quatro décadas, de 1949 até 1987, totalizando 140 mil detenções durante esse tempo.
A propaganda militar e o discurso das autoridades, que inflavam o medo do comunismo entre os taiwaneses, foram responsáveis por instaurar um clima de paranoia na população, especialmente durante as duas primeiras décadas do regime. Incitados a conspirar uns contra os outros, colegas delatavam colegas e vizinhos entregavam vizinhos. Assim como acontecia nos processos inquisitórios da Idade Média, ser suspeito de um crime era quase tão ruim quanto ser culpado por ele, já que a simples hipótese da culpa bastava para justificar a morte ou encarceramento de quem fosse julgado e, provavelmente, condenado pelos onipotentes tribunais militares – a despeito de qualquer inocência a ser reclamada décadas depois em memoriais às vítimas do período.
DETENTION: UM CONTO DE HORROR MARCIAL
Com sua peculiar arte em duas dimensões, Detention é uma aventura de apontar e clicar que empresta muito da atmosfera dos primeiros jogos da série Silent Hill, mas caminha com as próprias pernas para entregar uma experiência única. Jogamos como Ray, uma aluna do colegial presa em uma versão sombria de sua própria escola, completamente sozinha senão pelas criaturas fantasmagóricas que agora rondam os corredores. O objetivo primeiro da personagem é escapar do colégio, fazendo-o por meio da resolução de quebra-cabeças tradicionais do gênero point and click – explore, encontre o item de que precisa, avance e repita. Mas, do ponto de vista do jogador, o principal objetivo é muito mais complexo e imersivo: compreender o passado de Ray, suas motivações e os eventos que a levaram até ali.
A narrativa tem uma pegada profundamente psicológica, o que muito me agrada. Assim como os traumas e devaneios psicossexuais de James Sunderland moldavam a realidade em Silent Hill 2, o passado de Ray e o contexto sociopolítico de Taiwan nos anos 60 são responsáveis por modelar os horrores sobrenaturais que vemos em tela. O enredo de Detention é fragmentário e não cronológico, mas muito bem executado, e recompensa o jogador com pequenas peças narrativas que lentamente se organizam para formar um panorama complexo, culminando em um dos finais mais pesados – e memoráveis – que já vi em um jogo.
Não cabe aqui entrar em detalhes sobre a história – é um daqueles casos em que quanto menos você souber, melhor. Mas ela é tão boa que poderia facilmente ser trabalhada em outras mídias (como literatura, cinema e teatro), e prova disso é que foi adaptada tanto para um romance quanto para uma série televisiva. Parte do sucesso da narrativa, a meu ver, é sua capacidade de unir realidade e fantasia de maneira orgânica, sensível e perturbadora, sendo tanto uma crítica às violências do regime militar quanto um assustador causo do folclore taiwanês. Mas a cereja no topo do jogo é que Detention conta uma história universal, usando todas essas influências culturais e históricas para desenvolver sua trama ao redor de sentimentos profundamente humanos, com o qual todas as pessoas, em qualquer época e lugar, são capazes de se relacionar – em especial o sentimento de culpa.
Ecoando temas de filmes orientais como o sul-coreano Oldboy e bebendo da estética de obras japonesas como Ringu e Ju-On, ainda que com uma direção artística muito própria, Detention conta uma história triste e desconfortável, mas cheia de nuances e camadas interpretativas. Desde que terminei o jogo, há alguns dias, venho relembrando a narrativa e ocasionalmente me apercebendo de mais detalhes, fazendo conexões que me permitem, mesmo agora, produzir novas leituras sobre o roteiro. Em meio a tantas séries, filmes e jogos que fracassam em gerar interesse por poucas horas que seja, é realmente notável que Detention inspire uma reflexão tão rica e estimulante – qualidade reservada apenas a obras muito especiais.
EM PROL DA NARRATIVA
Detention tem uma jogabilidade simples, funcionando como um side-scroller tradicional – com deslocamentos horizontais e verticais pelo cenário –, mas faz ligeiros acréscimos que incrementam a diversão. Como parte de seu charme, o jogo tem até mesmo mecânicas básicas de stealth, um diário com as informações que coletamos e um rudimentar, mas efetivo sistema de inventário – além de um elegante recurso de salvamento manual em templos espalhados pelo colégio.
O melhor de tudo é que há um equilíbrio quase perfeito entre o desenvolvimento narrativo e a exploração, de modo que o tempo gasto pensando na resolução dos puzzles ou buscando itens pelo cenário nunca tira o foco da evolução da trama. Detention reconhece que tem uma boa história para contar, e faz de tudo para valorizá-la. Esse desejo de entregar uma rica experiência narrativa pode ser reconhecido também na dificuldade do jogo, equilibrada e não punitiva. Mesmo que o jogador morra sem salvar, os itens coletados permanecerão no inventário, penalizando minimamente o fracasso e evitando que a repetição desgaste o interesse do público pela história.
Como um jogo de apontar e clicar, era de se esperar que o debut da Red Candle tivesse alguns puzzles mais complicados de se resolver, daqueles que nos fazem congelar por trinta minutos em frente ao monitor enquanto nos esquecemos da história em si. Mas a verdade é que, com exceção de um ou outro, os quebra-cabeças são relativamente simples de se resolver, bastando alguma curiosidade e um pouco de atenção aos detalhes.
Ao balancear corretamente a progressão do jogador, a Red Candle garante que o ritmo de Detention seja excelente do começo ao fim, pois nunca passamos muito tempo sem avançar o enredo, sem receber novos detalhes que nos ajudem a decodificar o passado da protagonista e as causas de sua situação atual. Essa cadência permite que o jogo se desenvolva sem frustração e, mais importante, sem pausar por longos períodos a narrativa, regulando bem o tempo gasto com os desafios da jogabilidade e as recompensas narrativas oferecidas ao jogador. São poucos os jogos que conseguem atingir esse equilíbrio (e não raras vezes o descompasso entre puzzles e storytelling é a ruína de um jogo, como no caso da série A Plague Tale), motivo que por si só faz valer a compra de Detention.
DETENTION: O FIM(?)
Refleti muito antes de escrever este texto. Idealmente, gostaria de produzir um longo artigo esmiuçando em detalhes a narrativa do jogo, a fim de discutir como os fatos se conectam para dar vida a um dos roteiros mais impactantes dos modernos games de horror. Mas o melhor mesmo é que você descubra tudo por conta própria, sem alguém para intermediar sua interpretação. Detention merece ser degustado com o paladar limpo, preferencialmente em local ermo e ao abrigo do Sol, por qualquer pessoa interessada em jogos eletrônicos e boas histórias. A narrativa – que muito me fez pensar na possibilidade de um jogo situado na ditadura militar brasileira – pode deixar um retrogosto ácido ou ligeiramente amargo, assim como as obras intermidiáticas em que se espelha, mas isso apenas reforça o caráter incômodo e universal dos temas que aborda: a potência de brutalidade do ser humano, a opressão cotidiana das ditaduras e o silencioso, mas destrutivo poder da culpa.
Tenho certeza de que me lembrarei de Detention enquanto viver. E quem sabe até mesmo depois disso.