Ars longa, vita brevis: sobre a brevidade da vida em Passage

Quanto você consegue viver em cinco minutos?

Não temos tempo a perder, por isso este artigo será breve. Garanto: breve como nossas vidas, desde que você não interrompa a leitura para conferir a caixa de entrada ou alimentar o gato. Combinado? Mas estamos perdendo tempo. Por favor, me acompanhe.

Dois mil anos atrás, ao refletir sobre a brevidade da vida, Sêneca escreveu que não dispomos de pouco tempo, mas o desperdiçamos muito; que não recebemos uma vida curta, e sim a fazemos. “A maior parte dos mortais”, escreve o filósofo, “queixa-se da malignidade da natureza, porque somos gerados para uma curta existência, porque esse espaço de tempo que nos é dado transcorre tão veloz, tão rápido, que, com exceção de bem poucos, os demais a vida os deixa exatamente nos preparativos para a vida”¹. A morte, para nosso colega estoico, não está adiante, mas atrás de nós; cada dia de nosso passado pertence à morte, e o que nos resta é tão somente uma quantidade incerta de tempo entre o momento presente e o inevitável fim.

UMA VIDA EM CINCO MINUTOS

Dois mil anos depois – na semana passada, mais precisamente –, fiquei sabendo de um jogo chamado Passage, criado em 2007 pelo desenvolvedor Jason Rohrer, um cara que consigo facilmente imaginar batendo papo com o velho Sêneca em uma mesa de bar. Isso porque Passage funciona quase como um Sêneca: The Game, encapsulando em um jogo de cinco minutos a mesma pergunta à qual o filósofo repetidamente nos remete em seus textos: O que fazer com o tempo que nos foi dado?

Passage é muito simples em sua superfície: você controla um personagem masculino relativamente jovem – na casa dos 30 anos, vamos dizer? – e pode trafegá-lo livremente por um cenário pixelado. Dá para levar o homenzinho para a direita, para a esquerda, para cima e para baixo. O cenário é aparentemente infinito e você navega por ele como bem entender. Mas, como sempre acontece na vida real, existe uma pegadinha: você jamais conseguirá explorar o cenário inteiro. Não importa o que faça, o jogo acaba em cinco minutos. Somos então mais uma vez confrontados pela pergunta de ouro: O que fazer com os cinco minutos que nos foram dados?

Em minha primeira passagem² pelo jogo, andei a esmo por algum tempo tentando apenas me localizar no cenário. Atrás do personagem que eu controlava (isto é, à esquerda da tela), havia uma parede verde e nada mais. Eventualmente percebi que aquilo representava meu passado. Não era grande coisa (era verde), mas eu podia vê-lo nitidamente, pois era um passado recente – e eu tinha um futuro inteiro com o qual alimentá-lo. Por outro lado, notei que o caminho à frente (à direita da tela) estava embaçado, fragmentado, de modo que eu não conseguia enxergá-lo com clareza. Eventualmente percebi que aquilo representava meu futuro. Não havia nada lá porque eu ainda não o tinha vivido.

Poucos passos adiante, em direção ao futuro que ainda não existia, encontrei uma personagem feminina. Ela grudou em mim assim que me aproximei para pedir informações. Um coração de pixels vermelhos borbulhou entre nós e explodiu em fragmentos de baixa resolução, asseverando o compromisso de nosso amor. Aquela era minha esposa, percebi (talvez tarde demais). Dali em diante, para o bem e para o mal, ela seria companhia constante e irrevogável em minha (nossa) jornada por aquele mundo.

Juntos, minha companheira e eu nos aventuramos rumo ao sul do mapa, onde encontramos labirintos complexos que, segundo interpretei, representavam os muitos percalços da vida. Algumas vezes, o caminho escolhido nos levava a becos sem saída. Em outras, ficávamos presos porque a passagem³ adiante era estreita demais para nós dois, e perdíamos precioso tempo (nosso único e verdadeiro bem) refazendo o trajeto.

Mas nem tudo eram dificuldades: encontramos baús de tesouro que se abriram para nós em um festejo de cores, aumentando ainda mais a pontuação que só fazia crescer no canto superior direito da tela. Quanto mais explorávamos, mais baús encontrávamos. Ainda que eu não entendesse para que serviam os pontos, continuei buscando e abrindo baús na esperança de acumular mais pontos.

Lá pelos dois minutos de jogo, notei que meu personagem estava lentamente se deslocando para o centro da tela. A extremidade esquerda do cenário, de onde eu me afastava, foi se tornando um borrão suave que representava o passado, agora um tantinho diluído pelo tempo.

Quando eu e minha parceira atingimos a meia-idade, por volta dos dois minutos e meio de jogo, reparei que minha cabeça estava ficando calva. Os pixels loiros e cheios de vida estavam se desfazendo, expondo o crânio pálido escondido debaixo deles. O passado se tornou tão nebuloso quanto o futuro, e depois o futuro se tornou cada vez mais nítido à medida que nos aproximávamos do fim.

Tomado pelo horror da finitude, avancei em linha reta para a direita, para o futuro, tentando encontrar um sentido ou algo mais naquele cenário além dos tesouros fúteis que havíamos perseguido até então, e que de nada serviam para deter a impiedosa passagem do tempo. Procurei e busquei por respostas, mas não encontrei nenhuma. Perdi mais cabelo, enquanto os de minha esposa foram tingidos de branco – nós estávamos oficialmente velhos. Segundos depois, ela caiu no chão e desapareceu. Uma lápide brotou da terra onde ela havia caído, um bloco cinzento de concreto com uma cruz impassível gravada no centro.

Chorei sua morte e circulei sem rumo durante os segundos que me restavam, andando cada vez mais devagar à medida que minhas costas se curvavam sob o peso de todas as decisões que havia tomado até ali, imaginando tudo o que poderia ter feito se me fosse dado apenas mais um minuto de vida neste mundo abandonado por deus. Que outros caminhos teria seguido? Que novos tesouros teria encontrado?

Tombei de lado antes que pudesse cogitar uma resposta, transmutado em uma lapidezinha no extremo canto direito da tela, logo abaixo das centenas de pontos que acumulei durante minha breve existência – um lembrete zombeteiro de minhas estúpidas conquistas.

CADA SEGUNDO A MAIS É UM SEGUNDO A MENOS

Em minha segunda encarnação no universo de Passage, escolhi permanecer solteiro: contornei a personagem feminina e, uma vez livre de seu amor, avancei sozinho contra o mundo, ávido por desbravá-lo de novas e maravilhosas maneiras. Percebi que eu me locomovia mais rápido agora, na ausência de uma companheira para me atrasar. Também conseguia me espremer por caminhos estreitos, encontrando tesouros que antes me eram inacessíveis. Fiquei um bom tempo (talvez tempo demais) circulando pelos labirintos em busca de passagens e tesouros escondidos.

Porém, prestando mais atenção, logo percebi que ganhava apenas metade da pontuação por cada baú, o que me fazia trabalhar em dobro. A vida solo de repente começou a parecer um pouco menos atraente, mas o que eu podia fazer? Era a vida que eu havia escolhido.

Décadas se passaram na vida do bonequinho (um ou dois minutos de jogo) até que, encontrando-o novamente na meia-idade no centro da tela, com o cabelo ralo e já meio desbotado, sobreveio-me o pensamento de que envelhecer sozinho seria um processo doloroso e desnecessariamente triste. O tempo passaria e eu envelheceria perseguindo os mesmos tesouros abstratos, ainda que fossem novos tesouros abstratos, e no fim morreria sozinho e amargurado no fatídico canto direito da tela sem ter quem olhasse por mim.

“A vida segue a trajetória que iniciou e não retrocede ou detém seu curso”, lembrou-me o amigo Sêneca. “Não fará tumulto nem advertirá sobre sua velocidade: deslizará em silêncio”. Exceto pela trilha sonora de Passage, uma repetitiva e hipnotizante faixa eletrônica pela qual me vi estranhamente obcecado, a vida realmente deslizou em silêncio por nós – por mim e pelo personagem de meia-idade que, pobre coitado, dependia de mim para tomar todas as decisões ruins por ele. De repente, nos percebemos sozinhos; de repente, nos percebemos com medo. Mas ainda havia tempo, não havia? Se não estávamos mortos, então ainda havia tempo.

Invertendo a lógica da encarnação passada, corri imediatamente para trás, isto é, para a parte esquerda da tela que representava meu passado, como que buscando reaver a vida que não vivi inteiramente. Precisava alcançar minha não esposa e dizer a ela que estava arrependido, que ainda era tempo de vivermos uma grande paixão. Mas, quando enfim a encontrei, já na extremidade oeste onde se iniciava o cenário, ela estava morta e pouco restava para dar prova de sua existência.

Zanzei qual mosca ao lado da lápide por um momento, esperando o tempo passar. Não havia muito mais que eu pudesse fazer. Caminhei até o borrão que havia se tornado meu passado e aguardei. Por sorte, não precisei aguardar muito. Quando morri, pouco depois, eu estava praticamente no mesmo lugar em que havia começado cinco minutos antes. Sêneca estava certo: “É diminuta a parte da vida que vivemos”.

PASSANDO O TEMPO

Ao longo da semana, fiz todo tipo de experimentos com Passage. Aceitei novamente o matrimônio e novamente me arrependi, depois segui sozinho e me arrependi outra vez. Coletei tantos tesouros quanto podia e, na experiência seguinte, encerrei o dia com a menor quantidade possível de pontos (você ganha uma porção deles apenas andando pelo cenário). Em uma ocasião, tentei alcançar os extremos ainda desconhecidos do mapa; em outra, caminhei peripateticamente em círculos pelo cenário até meu tempo acabar, incapaz de decidir meu destino.

Na última das muitas sessões que tive com o jogo, tudo o que fiz foi permanecer parado no ponto onde se iniciava a aventura, cético demais para fazer qualquer coisa, apenas observando de longe a personagem feminina sem nome. Ela dependia de mim (o único outro habitante deste mundo perverso) para se tornar mais que um objeto decorativo do cenário – para viver uma vida, ainda que muito breve. Porém, até que eu decidisse me aproximar (coisa que decidi não fazer), ela ficaria plantada ali, no mesmo metro quadrado, pelo restinho de vida que lhe sobrava.

A distância, sem jamais fazer contato, vi os cachos ruivos que pendiam sobre os ombros dela se tornarem grisalhos e seu vestido mudar de cor conforme as décadas passavam por nós. Encontrei, afinal, alguma beleza em sua passividade estática: ao contrário de mim, aquela personagem jamais precisaria escolher; nunca lamentaria o que fez ou deixou de fazer, pois nenhuma decisão lhe era exigida. Para todos os efeitos, ela não teria do que se arrepender quando o fim chegasse: estaria mergulhada em uma vaga e reconfortante lembrança de sua existência imóvel, e não afogada em remorso e escolhas equivocadas. Era o suficiente. Tudo ficaria bem.

Quando ela finalmente morreu, e quando eu finalmente morri, pela primeira vez senti que morremos em paz. Meus últimos minutos em Passage não foram dedicados à caça de tesouros supérfluos ou à correria sem sentido pelo cenário, mas à contemplação da própria passagem do tempo e seus efeitos sobre nós.

Pode ser coisa da minha cabeça, mas acho que Sêneca teria apreciado o joguinho. Mesmo roubando irreversíveis cinco minutos da vida do jogador (só um pouco menos que este texto, me perdoe), o trabalho de Jason Rohrer sintetiza, ainda que com aparência enganosamente ingênua, uma variedade de temas e questionamentos complexos discutidos pela Filosofia, pondo em exercício a capacidade do jogador de encontrar a solução para um problema que talvez não tenha nenhuma: não acumular pontos, vencer inimigos ou avançar para a próxima fase, mas simplesmente descobrir a melhor forma de gastar seu tempo.

Há uma lição a ser aprendida em Passage – uma lição diferente para cada um, mas que está lá, esperando ser encontrada. Eu precisei jogar mais de dez vezes para chegar às minhas próprias conclusões, e fico pensando se também precisaria de dez vidas inteiras para chegar a certas conclusões no mundo real.

A VIDA É BREVE EM PASSAGE

“É preciso durante toda a vida aprender a viver e, o que talvez cause maior admiração”, conclui Sêneca, “é preciso durante toda a vida aprender a morrer”. Depois de vivenciar as consecutivas mortes de meu personagem e de sua companheira ao longo da última semana, tentando (e não conseguindo) aprender a viver em claustrofóbicos ciclos de cinco minutos, descobri-me estranhamente aberto à ideia de entregar meu personagem à dona morte. Assim, quando a bondosa senhora veio e me carregou pela última vez, deixando em meu lugar uma lápide sem nome, soube que aquele seria meu último ciclo – minha última passagem.

Senti que fazia bem em me deixar engolir pela escuridão que tomava a tela, anunciando o fim do jogo. Enquanto a logo dizendo “Passage” deslizava mais uma vez em azul-celeste contra um fundo negro que representava o vazio eterno, apagando em seu caminho qualquer vestígio de meus 300 segundos de existência, lembrei-me da máxima atribuída a Hipócrates, a mesma que ilustra o título deste artigo: “A vida é breve, mas a arte é longa”. Ironicamente, Passage continuará existindo por muito tempo ainda – talvez até mesmo indefinidamente. Que a mensagem imortal de Jason Rohrer seja, ela também, carregada por dois mil anos, ecoando a sabedoria de quem aprendeu a viver e morrer milênios antes de nós:

“Não há coisa mais difícil de saber do que viver”.

Você pode jogar Passage diretamente pelo seu navegador, clicando aqui. E, para saber mais sobre o projeto, recomendo conferir este breve texto em que Rohrer comenta suas intenções ao criar o jogo. Sua fala, muito mais do que a minha, pode jogar luz sobre eventuais interpretações da obra e alimentar discussões futuras.

Ah, e antes que eu me esqueça: obrigado pelo seu tempo.

 

 

 

 

¹ Todas as citações diretas deste artigo foram extraídas de: SÊNECA. Sobre a brevidade da vida. Tradução de José Eduardo S. Lohner. 8. ed. São Paulo: Penguin/Companhia das Letras, 2022.

² O trocadilho não foi intencional.

³ Trocadilhos intencionais a partir daqui.

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