À medida que jogava Ratchet & Clank: Rift Apart, fui me percebendo incapaz de encontrar o ângulo certo para abordá-lo nesta resenha. Quero dizer: eu estava gostando do jogo, mas ao mesmo tempo não estava gostando tanto assim. Ele era divertido, sim, mas também um pouco entediante. Bonito? Sem dúvida. Incrível? Acho que não. E logo reconheci que, apesar de suas qualidades técnicas, Rift Apart não estava me dizendo muita coisa em termos de narrativa ou jogabilidade – dificultando também meu trabalho de dizer algo sobre ele.
Enquanto jogava, só conseguia pensar nos gráficos: soberbos, multicoloridos, cheios de detalhes. Mas pouco se destacava além do departamento visual. Para começo de conversa, a história é morna: tem lá seus momentos, mas é bobinha demais para qualquer jogador que não use fraldas. E ainda que explore a ideia de multiverso – um tema do qual todos parecemos gostar –, não se esforça para se distanciar de qualquer outra narrativa que tenha explorado os mesmos tropos antes, sendo em tudo tão pueril quanto os próprios protagonistas.
Mas aqui, você percebe, entra o problema da abordagem: não é realmente justo criticar um jogo como este, que se pretende “para toda a família”, por ser infantil demais. Qual é, eu não tenho coração? Ou será que a criança dentro de mim está morta e enterrada?
De repente me vi de mãos atadas para tecer certas críticas ao jogo, reconhecendo que não poderia (ou ao menos não deveria) reclamar de características intrínsecas a sua proposta. Eventualmente, essa autocensura acabou se transformando em uma espécie de apatia crítica: Rift Apart me parecia limpo demais, quadradinho demais, perfeito demais para que eu fosse capaz de dizer algo verdadeiro sobre ele. Eu não estava, por assim dizer, conseguindo me conectar com o jogo.
E foi para dar cabo da apatia e estabelecer uma conexão verdadeira que eu, lá pelo último terço da campanha, resolvi apimentar as coisas experimentando cogumelos mágicos enquanto jogava – uma experiência antropológica que todo gamer deveria ter uma ou diversas vezes na vida.
RIFT APART: EM OOOUTRA DIMENSÃO
Os cogumelos foram presente de um amigo, comprados em uma lojinha no centro de Curitiba. Eles vêm ressecados dentro de uma embalagem hermética, parecendo uns chips de shimeji, e basta você colocá-los dentro da boca e então mastigar e engolir e esperar. Os cogumelos quase não têm sabor, exceto por um retrogosto levemente terroso que permanece na boca depois de ingeri-los, e costumam ter nomes como True Albino e Barba Branca.
Comi e aguardei enquanto fazia missões secundárias no planeta Sargasso, sobrevoando um pântano venenoso nas costas do que me parecia ser um dragão-fêmea, vez por outra descendo à terra para combater jacarés de uniforme e caranguejos homicidas.
Nesse breve passeio, me dei conta de que o universo de Ratchet & Clank é por si só muito psicodélico, o que haveria de combinar com os efeitos do fungo que agora se digeria no meu organismo. Também me ocorreu, talvez pela primeira vez, que a série tem muitas similaridades com Star Wars, esbanjando uma galeria de personagens curiosos, humor pastelão, espaçonaves, pseudociência e vilões unidimensionais, tudo empacotado para a viagem em uma narrativa monomítica, explosiva e saturada de frases de efeito.
Mas concluí, depois de dedicar algum tempo à questão, que Ratchet & Clank é, do ponto de vista narrativo, muito superior à saga de George Lucas, pois tem a sabedoria de nunca se levar a sério demais. Ou melhor: de simplesmente não se levar a sério.
Estava ainda pensando em Star Wars e em quanto dinheiro é possível espremer do que restou da franquia quando senti o cogumelo encontrando seu caminho até mim. Os sinais são claros. As mãos começam a tremer. A pele, maior órgão do nosso corpo, fica quente e espessa, hipersensível ao toque. As pupilas se dilatam, o mundo fica mais brilhante. Contra os 200 mil nits da LG a sua frente, tudo parece muito mais colorido do que é realmente. Uma sensação de relaxamento percorre a espinha, eriçando os pelinhos do braço. Sua mente derrete como um sorvete de baunilha sobre o bolinho quente que se tornou seu corpo. Você quer se sentir assim para sempre.
No retângulo que ilumina a escuridão da sala, dou piruetas e disparo rajadas laser enquanto controlo Ratchet ou Rivet – diferentes versões dimensionais do mesmo lombax –, alternando entre ambos de acordo com a missão. Mais do que nunca os visuais do jogo estão deslumbrantes, e por vezes tenho a sensação de ser puxado para dentro da tela, como se a luz e as cores e as texturas do jogo fossem mais reais do que a própria realidade. Como se o lombax e eu fôssemos a mesma criatura-pessoa, um animal antropomorfizado saltitando sobre o cadáver de seus inimigos enquanto desliza pelo cenário.
Por um instante tenho a impressão de que o jogo se utiliza de todas as cores que existem no mundo, cada curva do cenário brilhando em um tom diferente que me convida a explorar a paisagem a esmo. Quando o Sol brilha na tela, é como se estivesse brilhando dentro de minha própria sala, disposto a poucos palmos de mim. Coloco os fones de ouvido para aumentar a imersão e ajusto o volume até ficar praticamente surdo.
Pouco tempo depois, sinto a barreira da apatia começando a se esfarelar, derrubada por um trilhão de sinapses que meu cérebro hiperativo começa a processar, e então me sinto pronto para cavar fundo em busca da verdade sobre Ratchet & Clank: Rift Apart – e quem sabe voltar de lá com uma resenha em mãos.
A VERDADE SOBRE RATCHET & CLANK: RIFT APART
A verdade é que Rift Apart é como uma menina muito bonita que, você fatalmente reconhece, não é assim tão interessante. Como um bolo de casamento de três andares que fica lindo na foto, mas tem o mesmo gosto que qualquer outro bolo que você já tenha comido antes. À medida que minhas pupilas se fixavam mais e mais na televisão, pretas e redondas e brilhantes, com Rift Apart se desenrolando à minha frente como uma animação infantil interativa cheia de piadas sem graça e momentos de autovalidação, compreendi que o real problema do jogo não eram os diálogos rasos ou sua falta de ambição narrativa, nem mesmo os vícios que trazia de gerações passadas, mas um looping de gameplay que, sejamos honestos, é muito pouco satisfatório.
Rift Apart, como você provavelmente já sabe, mistura os gêneros de tiro e plataforma, mas não faz nenhum dos dois especialmente bem. Sendo os trechos de plataforma bastante simples e pouco inventivos – como “surfar” em trilhos aéreos ou resolver tediosos puzzles com a latinha Clank –, é o combate que acaba se tornando o filé da experiência. Só que o combate, assim como o resto do jogo, também não é grande coisa.
O tiroteio de Rift Apart é agradável, mas repetitivo. Quero dizer: é gostoso atirar com as armas e receber o feedback háptico do DualSense, ainda mais quando seu cérebro está encharcado de psilocibina e você está tão imerso na experiência que quase consegue sentir o coice da espingarda ao abrir caminho por um corredor de inimigos. Ou explodir uma máquina para vê-la se despedaçar em milhares de partículas incandescentes que voam espetaculares pelo cenário, como se fragmentos de sua própria mente fragmentada estivessem voejando pela tela. Mas, ainda que as armas sejam criativas (e haja um arsenal bastante variado delas), o sistema de combate não é robusto o suficiente para sustentar a campanha nas costas.
Depois das primeiras horas, depois que os gráficos e o visual estonteante já não deleitam os sentidos como antes, o que sobra na tela é tão somente um jogo de tiro arcade e old school sem qualquer mínima profundidade: basta atirar e desviar dos ataques de seus oponentes, de todos esses projéteis tão coloridos e tão, tão brilhantes.
Já disseram antes, e agora é minha vez de engrossar o coro: Rift Apart, assim como o Ratchet & Clank de 2016, é basicamente um jogo da era PS2 feito com gráficos de última geração. E isso não é nenhum demérito per se, é claro. Mas o problema é que, por mais divertido que seja pular e atirar e repetir, o jogo acaba se tornando mecanicamente oco depois das horas iniciais de empolgação e deslumbre – exceto se você, evidentemente, calibrar a experiência com uma generosa dose de psicoativos, que é o jeito certo de qualquer adulto jogar esse jogo.
DOOM PARA CRIANÇAS
Duas horas depois os efeitos do cogumelo atingiram seu ápice. Levantei-me para beber água e descobri que de repente conseguia enxergar no escuro. Passei rapidinho no banheiro, tentando evitar o espelho, e sem acender nenhuma luz flutuei de volta para o sofá. Rivet me observava impaciente através da tela, fazendo malabarismos com sua arma enquanto eu a mantinha ociosa, um bichinho que parece vivo vivendo dentro da minha TV. Tomei o joystick em minhas mãos suadas e coloquei a mocinha em movimento para circular por uma boate espacial, dançar break, não sei, incerto sobre o que fazer a seguir.
Pulei, girei a câmera, entrei no modo foto. Passei quase uma eternidade brincando com as configurações de captura e, quando me senti satisfeito, apaguei a foto e retornei ao jogo, ansioso para voltar a atirar em alguma coisa. Os reflexos na lataria de Clank parecendo os reflexos de um mundo real, o colorido do cenário mais colorido que no mundo real. Gráficos tão bonitos que eu poderia viver lá dentro como um terceiro personagem-título sempre disposto a cair em uma nova aventura, Ratchet & Clank & Yohan: Psilocybin Adventures. Os problemas a serem resolvidos no jogo tão mais simples que os problemas da realidade, mesmo jogando na dificuldade mais alta, e quem me dera eu pudesse diminuir a dificuldade de minha própria vida.
A sala na escuridão é iluminada por rompantes de amarelo-tiroteio e laranja-explosão, um arco-íris na madrugada quente, e pelas janelas abertas o vento se recusa a soprar. Os fones de ouvido empurram toneladas de ondas sonoras através dos meus tímpanos para dentro do crânio e fazem minhas orelhas suar, meus olhos como os olhos de um gato e minhas mãos como as garras de uma harpia envelopadas ao redor do joystick que é agora uma extensão de mim.
E no auge dessa experiência lisérgica, imerso em uma profunda atividade mental (mandando bala em um Tiranossauro Rex há vinte minutos sem conseguir derrubá-lo e ao mesmo tempo pensando profundamente em minha própria vida e no que estava fazendo ali sentado diante da TV em uma quinta-feira à noite, sozinho e chapado de cogumelos, ignorando mas nunca me esquecendo de que o relógio marcava já duas ou três horas da manhã e eu bem que deveria me deitar cedo para acordar cedo e trabalhar cedo no dia seguinte, eu sabia, mas também sabia que para isso precisaria de um emprego, o que eu não tinha desde dezembro do ano passado, e comecei a pensar no que seria de mim se não arranjasse trabalho nas próximas semanas, o que seria?, meio que consciente ou inconscientemente me martirizando por estar desempregado até que finalmente o T-Rex beijasse a lona), comecei a refletir que, de muitas maneiras, a série Ratchet & Clank é como Doom para crianças.
Quero dizer: você segue em frente com seu personagem, abrindo portas e se metendo onde não deve, e a cada cinco minutos é confrontado por hordas de inimigos em uma arena, cada um deles necessitando de uma abordagem diferente para ser despachado. Com o tempo, o acúmulo de diferentes inimigos em um mesmo espaço exigirá de você reflexos rápidos, conhecimento sobre as armas que carrega e uma excelente capacidade de controle de multidão.
Infelizmente, embora colorido e barulhento, o pipoco de Rift Apart está muito longe de ser tão intenso ou memorável quanto a gunplay de Doom. É verdade que nunca deixei de sentir algum prazer ao manejar armas tão malucas quanto um disparador de fungos ou um lançador de raios – ou minha favorita, um trabucão cujo projétil ricocheteia pelo cenário. Entretanto, o combate é raso e não demora para se tornar enfadonho. Quero dizer: as primeiras dez vezes em que usamos uma granada para transformar o inimigo em um arbusto gigante são divertidas, é claro. Mas quando fizer isso pela centésima vez, talvez você comece a se perguntar quanto tempo ainda falta para o jogo acabar.
Não ajuda que os inimigos se repitam durante toda a campanha, oferecendo uma variedade pouco saudável de desafios e rostos nos quais atirar. Por boa parte do jogo, por exemplo, fiquei com a impressão de que havia somente um tipo de chefe: um robozão que atira rajadas do peito e é constantemente reciclado em diferentes cores e formatos – procure-o entre as imagens desta matéria e certamente o encontrará.
O REPARADOR (E O QUE APRENDI COM RIFT APART)
Coincidentemente ou não, foi no clímax da jogatina (e com isso quero dizer no clímax dos efeitos psicodélicos do cogumelo) que estabeleci enfim algum tipo de conexão com Rift Apart, em um daqueles raros momentos com potencial de ficar na memória por muitos anos. A missão envolvia religar o Reparador, um robô gigantesco cuja utilidade era consertar coisas. Mas, ao ser reconectado, o Reparador decide que tudo está irremediavelmente quebrado, e o único jeito de consertar o mundo é destruindo o que existe nele – uma mensagem que chama atenção, instigando-nos a reflexões sombrias pelas entrelinhas de um jogo infantil.
O que se segue é a melhor sequência de ação do jogo inteiro, com Rivet e Clank fugindo das investidas do Reparador enquanto este destrói o cenário. Durante a fuga, o vilão diz a Clank (que passa grande parte do jogo despedaçado, sem pernas e com um braço a menos) para aceitar sua própria avaria. Rivet, que tem um braço biônico, intervém dizendo a Clank para não ficar chateado. Se ele está quebrado, então ela também está, e não existe problema nisso. Ei, eu disse (ou talvez tenha apenas pensado), eu também estou quebrado. Será que posso entrar no grupo? O recado era claro: aceite suas limitações, saiba lidar com as perdas, não sofra por aquilo que não pode ter – uma mensagem que ressoou comigo neste específico momento da minha vida.
No fim, obrigada a confrontá-lo, a dupla convence o Reparador de que ele ainda é capaz de fazer o bem. É uma conversa mole, pura lorota, mas o robozão fica emocionado o bastante para sofrer uma súbita transformação de caráter ao perceber que, ao contrário do que pensava, ainda tem a capacidade de ajudar os outros. Descem as cortinas, a missão se encerra, todos estão felizes – um momento que arrancou um singelo sorriso de mim e que achei por bem eternizar no vídeo abaixo.
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Aí então depois de uma noite inteira explodindo geleias sencientes e robôs vingativos, depois que o furor do cogumelo se esvaiu lentamente através dos seus poros enquanto você jogava para dar lugar a bocejos trêmulos que arrancam lágrimas de sono dos seus olhos, depois de se levantar e atacar a geladeira para saciar um repentino acesso de fome e se olhar no espelho (dessa vez você não consegue evitar) e ver que suas pupilas ainda estão dilatadas como as de um tubarão branco e voltar para a sala e se sentar em frente à televisão e decidir que vai jogar por apenas mais cinco minutos antes de perceber que jogou por mais uma hora inteira e o Sol já ameaça nascer, depois de pular e atirar e repetir pelo que pareceram 30 horas de uma longa campanha (mas que na verdade foram, você confere depois, somente 15 horas de uma campanha arrastada), depois de ver os créditos rolarem e tudo terminar horrivelmente bem para os lombax e seus amigos robóticos, depois de salvar as galáxias do multiverso como se fosse apenas outra terça-feira, depois que você enfim reconhece que quer apenas desligar o videogame e tirar o maior ronco da sua vida e se deitar na cama fitando o negro do teto, depois disso tudo e apenas um pouquinho antes de por fim cair nos braços do sono tão merecido você então percebe, antes tarde do que nunca, que Rift Apart pode não ser lá um jogo assim digamos tão memorável, nem ter uma jogabilidade assim digamos tão criativa, nem um roteiro que reinvente a roda ou nada de muito especial com exceção talvez de sua ludocinética (aprimorada pelas botas de hiperpropulsão e outros gadgets de deslocamento), mas é preciso ser honesto: ele faz com muito carinho aquilo que se propõe a fazer – ser um jogo colorido, leve e engraçado, que sirva de entretenimento barato para qualquer faixa etária –, e pode bem ser que isso seja o suficiente.
Então assim, meio dormindo e meio acordado, logo antes de ser tragado para o vazio profundo e cair em um sono similar ao coma, enquanto tentava encontrar uma frase com a qual pudesse fechar minha vindoura resenha de Rift Apart, se é que eu chegaria mesmo a escrevê-la ou quem dirá publicá-la, me peguei pensando que nem só de gráficos incríveis, personagens carismáticos e jogabilidade simplista vive um jogo eletrônico afinal de contas.
Mas quer saber? Às vezes, vive.